Fundadora da ONG Amigos do Bem, com mais de 10 mil voluntários e impacto social validado, a empreendedora Alcione Albanesi revela como transformar indignação em ação… com eficiência e amor.
Com uma trajetória que une ousadia empresarial e entrega ao impacto social, Alcione Albanesi construiu um legado raro: fez da excelência em gestão um instrumento para transformar vidas. Depois de fundar e liderar a FLC, empresa que dominou o mercado de lâmpadas fluorescentes no Brasil, ela tomou uma decisão radical: vender o negócio e se dedicar integralmente, de forma voluntária, à ONG Amigos do Bem. Criada em 1993 após uma visita ao sertão nordestino, a organização cresceu com estrutura, metas claras e uma cultura baseada em resultados e empatia.
Hoje, a Amigos do Bem atende mais de 150 mil pessoas em regiões de extrema pobreza nos estados de Alagoas, Pernambuco e Ceará. Com foco em educação, geração de renda e desenvolvimento humano, o projeto tornou-se referência em transformação com escala.
Eleita uma das Mulheres de Sucesso pela Forbes e representante da ONU no Brasil para a erradicação da pobreza, Alcione acredita que liderança é servir, com disciplina, presença e exemplo. Nesta entrevista, ela fala sobre como engajar milhares de voluntários, formar lideranças no sertão, aplicar inteligência emocional no combate à miséria e por que fazer o bem exige a mesma dedicação que gerir uma grande empresa.
EMPRESÁRIO DIGITAL: Em 1993, uma ação solidária de Natal deu origem à Amigos do Bem. O que te motivou a transformar uma ação pontual em um dos maiores projetos sociais do país?
ALCIONE ALBANESI: Desde pequena, aprendi com minha mãe que fazer o bem é um dever e que somos os maiores beneficiados por ele. A solidariedade fazia parte da nossa rotina: se eu ganhava um presente, precisava doar algo meu. Em 1993, mães de crianças atendidas por creches da minha mãe me falaram sobre a miséria extrema no sertão. Então não perdi tempo: reuni 20 amigos, levamos 1.500 cestas básicas e fomos para o Nordeste, sem saber ao certo onde era esse sertão.
Quando começamos a andar pelas estradas e ver a paisagem mudar até a seca total, encontramos uma realidade que não sabíamos existir no Brasil: casas de barro, fome, abandono total. Foi um choque. A pessoa que foi já não era a mesma que voltou. Vi que fazer o bem precisava ir além do que já fazíamos. Aquela viagem transformou minha vida para sempre.
EMPRESÁRIO DIGITAL: Essa experiência inicial mudou sua forma de enxergar o mundo?
ALCIONE ALBANESI: Completamente. Em poucos dias, tudo mudou. A forma como eu via o mundo, sentia as coisas… O bem não podia mais estar restrito ao meu entorno. Vi que era preciso estender a mão para lugares distantes, invisíveis, esquecidos. Voltamos e assumimos a responsabilidade de agir. Sem conhecimento, sem estrutura, mas com muita vontade e amor.
EMPRESÁRIO DIGITAL: Em 2014, você vendeu a FLC, uma empresa de lâmpadas, para se dedicar integralmente ao projeto. Como foi essa transição?
ALCIONE ALBANESI: Foi uma decisão muito difícil. A FLC foi criada por mim em 1992 e se tornou líder de seu setor, com quase 40% de participação de mercado. Eu conciliava a gestão da empresa com as ações no sertão, viagens à China (fui 71 vezes), filhos, casa… Em 2014, percebi que precisava me dedicar totalmente ao projeto social. Vendi a empresa e assinei o contrato chorando, mas com a consciência tranquila. Queria devolver à vida um pouco do muito que ela me deu.
EMPRESÁRIO DIGITAL: E como foi essa nova etapa na Amigos do Bem?
ALCIONE ALBANESI: Com dedicação total, conseguimos expandir ainda mais. Abrimos novas frentes: geração de renda, infraestrutura, saúde, educação, que sempre foi a base. No início, era assistencialismo mesmo: levar comida, roupa, remédio. Afinal, quem tem fome não é livre. Mas logo percebemos que, sem educação de qualidade, não há futuro.
Hoje, temos quase mil jovens formados. Assistentes sociais, pedagogos, profissionais que são os primeiros de suas famílias a obter um diploma. 95% dos nossos professores foram crianças que corriam pelo mato seco há 30 anos. Já temos uma geração transformada.
EMPRESÁRIO DIGITAL: A geração de renda também passou a ser um foco importante do projeto?
ALCIONE ALBANESI: Sim. Não há mudança econômica sem trabalho. Abrimos 15 unidades produtivas, com mais de 2 mil pessoas empregadas. É a única fonte de renda de muitos municípios. Produzimos, por exemplo, a castanha de caju mais vendida no país. Trabalhamos com grandes redes, como Carrefour e Pão de Açúcar, com marca própria e aprovação da Anvisa. Isso exigiu muita qualificação: alfabetizamos todos os trabalhadores, ensinamos processos, garantimos qualidade.
EMPRESÁRIO DIGITAL: Sua experiência como empresária ajudou a estruturar o projeto?
ALCIONE ALBANESI: Muito. A base é o amor, mas sem gestão nada se sustenta. Eu trouxe toda a bagagem empresarial: processos, exigência, governança. Somos auditados pela Ernst & Young desde 2016. O IDIS, que mede impacto social, avaliou que, a cada R$ 1 doado, geramos R$ 6,45 em transformação social. Isso porque atuamos em grande escala: são 150 mil pessoas impactadas em 300 povoados, com quatro centros de transformação, 10 mil crianças transportadas diariamente, 150 veículos, plantações de caju em dois estados…
EMPRESÁRIO DIGITAL: Como vocês mantêm o espírito humano em meio a tanta complexidade?
ALCIONE ALBANESI: Com muito cuidado. Crescemos, mas mantivemos os mesmos valores. Antes de contratar alguém, avaliamos se a pessoa já conversa com a solidariedade. Queremos competência, mas também sentimento. Não queremos industrializar o nosso projeto. Cuidamos de gente. E cuidar de gente exige olhar no olho, escutar, estar presente. Eu passo de 10 a 14 dias por mês no sertão, pessoalmente. Não saio de casa para atender milhares; saio para olhar um a um.
EMPRESÁRIO DIGITAL: Qual é, para você, a principal lição dessa trajetória?
ALCIONE ALBANESI: Que a indignação precisa vir acompanhada de ação. Muitos se indignam, mas poucos agem. Começamos sem saber quase nada, nem de geografia!, mas com muita vontade e coragem. E descobrimos que, quando você começa, o caminho se revela. A maior transformação acontece dentro de nós. O bem transforma o mundo, mas, antes, transforma quem o pratica.
EMPRESÁRIO DIGITAL: A educação é um dos pilares da ONG Amigos do Bem. A escola de Inajá, por exemplo, alcançou nota 9,2 no IDEB. Quais estratégias foram fundamentais para esse resultado?
ALCIONE ALBANESI: Conseguir uma educação de qualidade no sertão é um desafio imenso. Muitas crianças moram a 30 quilômetros da escola, não têm acesso à internet, nem pais que possam ajudar, muitas vezes são analfabetos. Mesmo assim, alcançamos 9,2 no IDEB, enquanto em São Paulo a melhor escola está em torno de 6,5. Isso é fruto de muito esforço e de uma metodologia própria. Trabalhamos a criança como um todo. Antes de ensinar português ou matemática, damos segurança e motivação. Muitas dessas crianças nunca ouviram dos pais um “você é inteligente”, nunca receberam um abraço. Por isso, ensinamos também o afeto. Temos um projeto mensal com os pais para desenvolver vínculos familiares. Só depois disso é que entra o conteúdo escolar, dividido por níveis, respeitando o ritmo de cada um. E todo o material pedagógico é desenvolvido por nós, com base nessa abordagem.
EMPRESÁRIO DIGITAL: Você acredita na formação de lideranças locais como chave para a transformação social. Como isso acontece na prática?
ALCIONE ALBANESI: Acompanhamos as crianças desde cedo e identificamos aqueles que se destacam, jovens com talentos que vão além da média. Investimos neles, desenvolvendo suas habilidades. Hoje, já temos desenvolvedores de software, programadores, gente trabalhando com tecnologia no sertão. Também incentivamos o empreendedorismo: há jovens produzindo e vendendo bolos, doces, participando de aulas de culinária. Eles já têm receita própria. Quando você aposta em quem já demonstra aptidão, tudo muda. Essas lideranças locais são fundamentais para criar um futuro diferente para as comunidades.
EMPRESÁRIO DIGITAL: Como é possível manter o engajamento de mais de 11 mil voluntários ao longo de tantos anos?
ALCIONE ALBANESI: O que move tudo isso é o amor. Desses 11 mil voluntários, 30% estão conosco desde 1993. Outros 50% estão há mais de 15 anos. O engajamento vem do exemplo. Eu sou a primeira a chegar e a última a sair. Caminhamos juntos. Temos mães que perderam filhos e, mesmo com a dor, fazem enxovais para os bebês do sertão. Nosso centro do bem é uma central de amor. São 140 grupos de trabalho, com médicos, dentistas, pedagogos, empresários… Lá não importa a posição ou o patrimônio. Colocamos a camiseta branca e somos todos iguais. O que importa é o que cada um carrega no coração.
EMPRESÁRIO DIGITAL: Você tem um novo projeto ou ideia de expansão para compartilhar?
ALCIONE ALBANESI: Mesmo com tantos desafios, estamos iniciando mais um centro de transformação. Serão 55 salas de aula em São Domingos, numa região extremamente pobre, onde as crianças estudam em classes multisseriadas. Lá, o analfabetismo é quase total e a água é salobra, impossível de usar para plantio. Ainda assim, vamos começar. Porque cada novo centro é um farol de esperança. São mais de duas mil crianças que terão a chance de sonhar. Às vezes dizemos que vamos parar, mas não conseguimos. Quando se tem consciência da missão, não dá para parar.
EMPRESÁRIO DIGITAL: Para quem quer começar a atuar em projetos sociais, mas não sabe por onde, qual é o seu conselho?
ALCIONE ALBANESI: Comece. Ao seu lado sempre há alguém precisando de ajuda. Pode ser uma instituição, uma ONG ou um grupo de pessoas. O bem pode ser feito em qualquer circunstância, mesmo quando você não está bem. Doe seu tempo, que é nosso bem mais precioso. Escolha uma causa com a qual você se identifique e comece. Quando você vê o impacto disso, tudo muda. Eu sou muito feliz por ter essa missão. É desafiador, falta tempo, recursos, eu tenho sete netos… Mas a gente entende o propósito. Meus filhos me dividem com milhares de outros filhos. E eu tenho certeza de que todos nós estamos aqui de passagem. Um dia as luzes se apagam. E o que queremos deixar? Um legado. Como diz Cortella, não seremos lembrados pelos bens materiais, mas pelo bem que fizemos. E todos nós podemos deixar um legado, começando dentro da nossa própria casa.