Malu Sevieri

A tecnologia e a abertura para o novo

Dizem que nosso defeito é sempre nossa maior qualidade. E isso se passa também com a internet. Não precisamos abordar nem enfatizar tudo o que ela trouxe de bom para o mundo e a sociedade: a onisciência da democratização do conhecimento, a onipotência de poder se expressar e ser descoberto em nossos talentos e a onipresença por nos comunicarmos com qualquer pessoa do planeta em qualquer idioma.

O surgimento da internet pode ser considerado um dos grandes marcos da evolução humana se pensarmos que ela se processa de maneira democrática e ecumênica. Todas as revoluções anteriores se deram de cima para baixo, privilégio inicial de poucos, e agora é o contrário. Quanto mais inacessível for a região e quanto mais pobre for a pessoa, mais a internet impacta e muda sua vida.

Mas o importante é manter uma visão crítica e analisar também seus problemas, questionamentos sociológicos preocupantes que a internet trouxe e que geram desafios para todos nós pelo que isso pode representar de risco para as próximas gerações. Estou me referindo ao plano da aceitação das diferenças, da abertura ao contraditório e da busca da harmonia entre indivíduos e grupos sociais. Vamos analisar por quê.

Quando as mídias eram de massa, havia um constante confronto com o contraditório. Nós tropeçávamos o tempo inteiro em algo com o qual não concordávamos ou não gostávamos. Lembro-me até hoje de que meu pai assistia, aos domingos pela manhã, a um programa de TV com concertos de música erudita e lá ficava eu, ainda pequeno, na sala meio a contragosto ouvindo também. Outras vezes, alguém na família ouvia um programa de rádio com viés de esquerda e, por mais que não concordássemos com as ideias, lá ficávamos nós ouvindo teses diferentes das de nossas crenças. Com isso, éramos o tempo todo expostos a temas e assuntos que jamais escolheríamos ir atrás, mas eles iam atrás da gente.

A consequência era que, sem querer, ouvíamos pessoas ou manifestações artísticas que não tinham nada a ver conosco e que, se dependesse de nossa vontade, jamais teriam nossa atenção. Como resultado dessa obrigatoriedade plural, tornávamo-nos pessoas mais abertas, e muitas vezes o argumento contrário às nossas verdades acabava nos convencendo e até mudávamos de ideia em função disso.

A realidade da internet e das mídias sociais mudou tudo. Passamos a nos segmentar, tornamo-nos sectários em nossas vontades e opções na busca de entretenimento e de informação. Hoje, só seguimos quem concorda com nossas ideias, só assistimos àquilo que vai ao encontro de nossas crenças, só dedicamos tempo ao que já nos interessa, sem nenhuma chance para o novo, o contraditório, o diferente.

Segundo Frédéric Martel, autor francês do livro Smart, a internet se caracteriza mais por sua fragmentação que pela globalização. Estamos nos tornando cada vez mais fechados naquilo de que gostamos e acreditamos, vivendo em guetos e tribos temáticas que impermeabilizam nossa alma e nossa cabeça. Se em um canal de TV ou jornal somos expostos a uma infinidade de matérias e notícias na qual a priori não estamos interessados, mas ao tropeçar nela criamos novos interesses, nas mídias sociais se dá o contrário, vamos fechando o funil de opções, seguindo e sendo seguidos só naquilo em que cremos e apreciamos, sem chance para o inédito, o contrário, o diferente.

Essa visão redutora e sectária cria uma nova geração de seres mais dogmáticos e cheios de certeza, pessoas que acham que sabem o que querem e não querem saber o que não sabem. E pior, não respeitando ou desprezando os que porventura pensem diferente, acreditem em teses adversas ou cultuem prazeres distintos.

O resultado disso é que, enquanto a sociedade exige de nós cada vez mais a aceitação das diferenças, sejam elas religiosas, políticas, sexuais, raciais ou comportamentais, estamos indo cada vez mais para a direção contrária. Ao não ouvir o outro lado, ficamos só no nosso conforto de confirmações frequentes, fechando olhos e ouvidos para quaisquer outros argumentos que contradigam nossas crenças e desejos pessoais.

A maciça utilização de algoritmos parece agudizar ainda mais esse fenômeno das tribos, castas e estamentos na internet. Basta ouvir por três dias jazz no Spotify para que ele defina e personalize seu gosto e, a partir daí, ofereça apenas esse tipo de gênero musical, por mais que você seja pluralista em matéria de entretenimento auditivo. E o mesmo ocorre com as recomendações da Amazon ou da Netflix. Com o domínio dos algoritmos, nosso comportamento passado nos incentiva ao reducionismo futuro.

É difícil prever aonde isso tudo vai nos levar como civilização. Mas uma coisa é certa: o caminho da tolerância passa pela pluralidade e abertura mental, pela capacidade de quebrar paradigmas e rever certezas. Não é para onde a tecnologia e a sociedade parecem estar caminhando no momento. E precisamos rapidamente alterar esse estado de coisas.

Por Walter Longo

 

 

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Novembro 2024

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