Fernando Musa, CEO da Ogilvy, Fernando Musa aposta no poder transformador da publicidade para um Brasil mais fortalecido diante da crise – e com mais justiça social.
Fernando Musa é um profissional inquieto. E é estranho falar de inquietude – sinônimo de
movimento e até de insatisfação – quando olhamos para sua trajetória no mundo da publicidade. Afinal, o executivo permanece na mesma agência, a Ogilvy, há 25 anos – desde que alguém lá dentro se surpreendeu com um currículo inusitado, cheio de ilustrações criativas, de um jovem cheio de energia e vontade de crescer numa agência do tamanho das suas ideias.
Se um quarto de século “no mesmo emprego” não combina com a imagem de desassossego com que começamos este texto, um mergulho mais profundo na história do publicitário vai mudar essa perspectiva. Musa atravessou esses anos sempre experimentando, buscando ideias novas e gente instigante ao seu lado, criando uma cultura de propósito e empatia numa das gigantes do seu ramo, reconhecida internacionalmente. Foi tão ousado em sua inquietude que chegou a criar sua própria agência, a David – o que fez com toda a diplomacia, sem nunca sair da Ogilvy.
Hoje, aquele rapaz criativo, que nunca pensou em ser outra coisa na vida a não ser publicitário, é CEO da primeira empresa grande que o contratou, um dos maiores grupos de comunicação do país. E sua mente agitada não para de refletir sobre a própria condição, a de sua agência e a do mercado em que atua, relacionando a capacidade de transformação das empresas de publicidade com a esperança de um Brasil melhor – mais plural, em que todas as vozes sejam ouvidas, com mais equidade e condições dignas para todos.
Mas está certo isso, misturar negócios com política? Musa sabe que sim. Aos interesses por trás do assistencialismo, usado por políticos dos mais diversos campos ideológicos, ele prefere acreditar na força da iniciativa privada para as ações mais revolucionárias e urgentes. Aposta, sobretudo, no poder da criatividade como o dínamo capaz de mudar essa rota pessimista à qual o Brasil tem sido levado. A visão publicitária de Fernando Musa é um reflexo brilhante – e muito premiado – de sua visão de mundo.
EMPRESÁRIO DIGITAL – Queria que você explicasse o que ainda te deixa motivado depois de tanto tempo na publicidade.
FERNANDO MUSA – Tem a ver com o fato de eu querer ser publicitário mesmo antes de pensar em fazer vestibular. Essa dúvida nunca passou pela minha cabeça. Porque eu tinha um tio-avô que era da publicidade, um desses caras que contavam histórias extraordinárias da propaganda da época dele, dos anos 1970, e eu fiquei com aquilo impregnado. Eu via aquele seriado, A Feiticeira, em que o marido trabalhava numa agência de publicidade, e tinha algum tipo de magia envolvida nas melhores campanhas… Era fascinante. Então logo entrei neste mercado, começando pequeno ainda. Era muito difícil naquela época você ter acesso a uma agência de destaque, que estivesse entre as dez maiores. Para dar esse salto, eu decidi fazer uma abordagem maluca. Mandei um currículo em forma de anúncio… de mim mesmo. Tinha a ilustração de vários executivos tentando escalar o Pão de Açúcar, o bondinho e um cara dando tchau. Peguei os nomes de pessoas importantes nas dez agências que eu queria trabalhar e mandei pelo correio. A única que me ligou foi a Ogilvy.
Fernando Musa
Porque eu tinha um tio-avô que era da publicidade, um desses caras que contavam histórias extraordinárias da propaganda da época dele, dos anos 1970, e eu fiquei com aquilo impregnado
ED – Você ainda tem esse material?
FERNANDO MUSA – Eu não tenho mais, se perdeu. Mas o fato é que, quatro dias depois de me ligarem, eu estava lá… depois de ter levado muita porta na cara. Entrei na Ogilvy em 1995, estava no trapézio sem rede de segurança. Então eu tinha uma determinação de fazer acontecer. E a coisa foi acontecendo. Eu fui botando meu jeito, fui conhecendo pessoas que foram me ensinando… Tive convite para sair, mas sempre acabava decidindo permanecer na Ogilvy. Sentia que essa minha motivação se renovava o tempo todo. Por causa das pessoas que estavam lá, dos clientes, do trabalho que eu tinha oportunidade de fazer.
ED – Como, agora em 2020, você olha para aquele profissional em início de carreira que você foi?
FERNANDO MUSA – Apesar de eu não ter a tal rede de segurança, nunca deixei de ser eu mesmo, de falar o que eu pensava, às vezes até contra a hierarquia. Porque eu precisava fazer dar certo. Hoje sou presidente do grupo, mas comecei lá embaixo, , pedindo emprego, saindo de uma agência menor, descobrindo aquele mundo aos poucos. Eu surgi de lugares que ninguém nunca tinha ouvido falar. E tudo bem. No fundo, o que te define é quem você é e o trabalho que você consegue fazer. Agora as pessoas falam que você não pode ter medo de errar, que precisa errar rápido.
Eu já errava sem medo naquela época. Eu não pedia licença.
ED – E como foi que pensou em empreender, mesmo estando tão envolvido com as atividades da Ogilvy?
FERNANDO MUSA – Eu decidi sair e montar uma agência que pudesse ter o meu jeito. Mas olhei bem para aquela empresa que havia aberto as portas para mim depois que eu tinha enviado um currículo maluco… Então pensei em convidá-la para uma sociedade. Eles entenderam o projeto e aí nasceu a David, fruto de uma necessidade de criar algo mais pessoal, mais de empreendedor mesmo. Foi quando vivemos todas as dores de empreender, os desafios de começar do nada. Só que com a segurança de ter um sócio investidor bancando a nossa ideia. Começamos a construir uma cultura que era derivada daquela multinacional, mas que era nossa também. Tínhamos nosso próprio jeito de ser, de atrair novas pessoas e contar uma história inédita. Foi a Ogilvy que também me deu isso. Me deu amigos, me deu excelentes profissionais, me ensinou muito, me deu clientes e me deu ainda a chance de empreender sem eu ter de sair da agência.
ED – Como foi seguir com os dois negócios ao mesmo tempo?
FERNANDO MUSA – É até engraçado, porque estou numa posição em que eu consigo enxergar claramente o lado corporativo e o executivo. Tem o Musa executivo responsável pela Ogilvy e tem o Musa founder da David. São coisas ora complementares, ora antagônicas. Eu transito bem nisso.
ED – Você se encontrou nessa dualidade?
FERNANDO MUSA – Sim, acho que, no final das contas, há algumas realizações que definem quem você é. Primeiro é conseguir fazer um trabalho no qual você tem prazer. Não precisa ser autoral, mas é você entender concretamente a sua atividade e ter a chance de fazer grandes trabalhos. Na Ogilvy, eu pude mirar muito alto. Em 2013, conseguimos ser a agência do ano em Cannes, a mais premiada do mundo. Quando a David nasceu, em sete anos ela já acontecia criativamente, com uma crença de como a criatividade é capaz de transformar o negócio, como ela é importante para a construção de marca, para o resultado… Acho que, nesses vinte e tantos anos de Ogilvy, eu sempre consegui me colocar de novo no banco do “não sei”… do ter de aprender de novo.
ED – Como é estar à frente de uma agência num ecossistema que está em constante transformação, com inteligência artificial, algoritmos… tantos elementos que vão mudando as atividades e os conhecimentos necessários para o dia a dia?
FERNANDO MUSA – Primeiro é estar sempre questionando aquilo que você sabe. Porque o ecossistema muda numa velocidade que você não vai acompanhar por mais que se esforce.
ED – Falando de aprendizado, como está sendo este momento de pandemia para a Ogilvy e para o mercado publicitário de forma geral?
FERNANDO MUSA – Pelo lado humano é um desastre. Num plano pessoal é uma coisa terrível. Começaram a romantizar algumas coisas da pandemia… Desculpa, mas home office é quando você escolhe trabalhar em casa, quando tem um ambiente adequado, seu lar funciona bem nessa dupla função. O que a gente fez não foi home office, foi um get out of the office e vamos ver o que acontece. De cara, tem este primeiro impacto. Com o susto e as informações confusas. A sensação é de que o mundo virou um lugar onde quem criar o melhor storytelling vai vencer. E não pode ser sobre isso. Então pare para observar, para tirar suas conclusões, escutar o outro lado… e vá trazendo para a sua vida aquilo que você acha que é o certo. Na Ogilvy, o desafio inicial foi manter o sistema funcionando e ver como é que a gente apoia as pessoas, como é que lidera à distância…
O planejamento agora é semanal, o contato com as pessoas é o tempo inteiro, e sempre reavaliando as decisões que já tinha tomado. Você tem de rever todo seu conjunto de decisões e de estratégias porque não existe longo prazo numa pandemia.
Tem de executar num ambiente que, além de estar em transformação, não tem um histórico para alguém dizer como faz. Precisamos desapegar da forma como trabalhávamos, porque agora tem de ser de outra maneira. Como se não bastasse, há o desafio de manter a cabeça no lugar e ter um olhar humano para tudo, porque não dá para exigir que as pessoas sejam máquinas e que não se afetem com a situação. Talvez estejamos no maior estudo psicológico da humanidade, com um volume de transformação enorme, rápido e sem briefing.
ED – Isso muda a forma como você pensa a publicidade?
FERNANDO MUSA – Sim, porque a cadeia de necessidade mudou como um todo. As escolhas mudaram. Hoje, a sua referência sobre o que é essencial para você é completamente diferente da de cinco meses atrás. As empresas e as agências – todo mundo que conseguir juntar esse lado humano com o lado da observação e da execução, sem ficar parado – podem sair diferentes e fortalecidas. Eu acho ruim falar que grandes oportunidades vêm de crises… isso é chavão. Mas acho que é, sim, uma oportunidade de você rever tudo que está dentro de você e ressignificar.
ED– Como é para você ver um cliente que tem um serviço que agora, com a pandemia, não está mais se encaixando com a necessidade das pessoas?
FERNANDO MUSA – A gente não pode ser definitivo em nada no mundo hoje. O que a gente pode é ser muito honesto. Acho que esta pandemia jogou luz sobre um bocado de coisas, porque além de transformadora ela é reveladora. Se uma empresa não é legal, isso vai ficar mais evidente. Agora, se ela tem inovação, um mindset de fazer, isso também vai ficar mais notório. O que eu acho é que a capacidade do ser humano de se adaptar é gigantesca – tanto que estamos aqui até hoje. A capacidade da nossa ciência também é importante, e é nisso que temos de apostar. Precisamos também investir na qualidade da informação. No meu caso, a criatividade é um tremendo agente transformador. Com a pandemia, há um resgate da importância da criatividade em qualquer negócio, seja no time que você está montando, seja no trabalho que você está fazendo, seja na solução que você vai dar para o seu negócio… você agora depende disso para sobreviver.
ED – Você começou nos anos 1990, um dos grandes momentos da publicidade. Que pontos fortes as agências daquela época precisavam ter para atender bem as grandes marcas e como isso mudou?
FERNANDO MUSA – Mudou tudo. Na época, você tinha um mercado muito mais centrado em figuras, em pessoas, e acho que hoje você tem a importância da cultura da liderança dentro de um ambiente absolutamente diverso, com pessoas de diferentes backgrounds e experiências de vida. Na década de 1990, as agências eram brancas, elitistas, falavam com a sociedade aqui de cima, o universo de comunicação era também restrito, uns quatro ou cinco veículos… e hoje não. A gente está num lugar de muito mais informação e mais referências horizontais.
ED – A Ogilvy, especialmente, tem um trabalho legal voltado para a diversidade…
FERNANDO MUSA – Tem. E é algo que precisa sempre ser autêntico. Se você não se colocar num lugar de apoiar a diversidade ou não acreditar que ela de fato aporta valor, você não vai fazer com sinceridade. Essa verdade, dentro da Ogilvy, não é só minha, ela tem de ser de todo mundo que está ali, desde a atração dos profissionais, desde a preparação de quem está lá dentro… Porque o mundo é diverso. Então, se você está trabalhando com uma marca e com um discurso que necessitam atingir essa diversidade, você precisa ter um ambiente que retrate essa vida real. E a vida real não é a bolha em que você está vivendo.
ED – Esse é um assunto tão delicado que hoje uma peça publicitária pode ser criticada e ser alvo de uma campanha de cancelamento nas redes sociais. Como é lidar com esse risco?
FERNANDO MUSA – Além de você ter essa preocupação logo de saída, precisa contar com pessoas que te digam o que não fazer. Tenha pessoas com lugar de fala e voz naquele assunto, para conferir se você não está tendo um viés inconsciente. Por mais que evolua e discuta, a gente vem de um lugar diferente do de outras pessoas. Então ter esses indivíduos representados e fazendo comunicação é fundamental. E aqui eu estou falando desde a questão racial, sexual… A agência precisa ter pessoas com vivência naquilo para poder opinar. Não adianta só ter a preocupação. Você só consegue transitar nisso se tiver gente representada fazendo. Acho que essa é a grande transformação. E ainda tem muito o que ser percorrido, uma distância enorme.
ED – A presença da publicidade no digital… o que ainda vai ter de novo em relação a isso?
FERNANDO MUSA – Num país como o Brasil, eu acho que, além da educação, o outro acelerador social se chama conexão. Como você transforma o país? Com educação e wi-fi. Para mim, o que a gente tem de discutir é a questão do digital como grande instrumento de inclusão social. E precisa ter uma classe política, uma classe de justiça, de legislação e nos meios de comunicação que entenda disso, porque a inclusão social virá da digitalização. Obviamente ao lado da educação, que aliás necessita da digitalização para chegar a todo mundo num país continental como o nosso. Isso demanda qualidade, preço e ausência de barreiras. A gente precisa ter a dimensão do que isso representa na vida das pessoas.
ED – Sem levar para a política partidária, mas essa inclusão que você aponta não parece ser prioridade da maioria dos políticos. Você se considera um otimista em relação ao Brasil?
FERNANDO MUSA – Sim, eu acho que a gente tem de ser otimista porque é o que nos resta. Se você quer fazer e quer transformar, você precisa do otimismo. Porque o pessimismo vai te jogar num lugar sombrio e imobilizador. Então ser otimista não é uma questão de escolha, mas de sobrevivência num país tão novo quanto o nosso e tão raso em algumas coisa. A pandemia jogou luz em questões como a falta de saneamento, a falta de educação. Não foi a pandemia que trouxe isso para o país, essas coisas já existiam. Somos de uma geração, dos 35 até os 50 anos, que falava que o Brasil era o país do futuro, que não é um país preconceituoso nem racista… Mentira, nós somos tudo isso. E se a gente não olhar para essas coisas, elas nunca vão mudar. Eu acredito na iniciativa privada para fazer essa mudança, de verdade. Acho que as empresas têm um papel gigante na transformação deste país.
ED – E tem muita iniciativa bacana.
FERNANDO MUSA – Muita. Acho que o que vem salvando a sanidade no Brasil durante esta pandemia têm sido as iniciativas das pessoas e das empresas para ajudar. E o processo de transformar dá trabalho, demanda esforço, investimento, educação. Mas são temas que precisamos colocar na nossa vida pessoal, na nossa vida empresarial e no país. Temos de criar um ambiente que traga essa transformação para dentro da política também. Uma renovação no sentido de novas cabeças, novas lideranças.
ED – Como você vê agências como a Ogilvy nessa transformação necessária que você acabou de expor?
FERNANDO MUSA – Primeiro a gente tem um papel fundamental de retratar a sociedade tal qual ela é, e tal qual a gente quer que ela seja. Uma peça publicitária também educa as pessoas sobre como é o mundo. Educa no sentido de retratar uma realidade que normaliza alguns comportamentos, seja para o bem ou para o mal. As agências têm um papel de dar voz a pessoas e marcas que estão transformando, para que elas sejam admiradas e que aquilo tenha valor comercial. Não é que nós estejamos convocando pessoas do bem. Precisamos ressaltar que diversidade, propósito e transformação trazem resultado. Estamos nesta cadeia principalmente para fazer isso, não para falar sob o ponto de vista assistencialista. Assistencialismo não é transformação. Ele é necessário e fundamental num país como o nosso, para a gente tentar equilibrar melhor, mas precisamos de um discurso transformador para fazer diferente. E mostrar que isso trará diferencial competitivo para as empresas. Porque no final do dia um negócio precisa ter resultado – é ele que vai dar impulso a iniciativas capazes de mudar a sociedade.