Expoente do futurismo no país, Tiago Mattos antecipa para gestores de grandes marcas como serão os negócios e o trabalho de um tempo além da nossa percepção
Há exatamente 30 anos, perdíamos um cantor e compositor que criou, pouco antes de morrer, um verso visionário sobre o Brasil de 2020: “eu vejo o futuro repetir o passado”. Em “O Tempo Não Para”, Cazuza fala de um país que é “um museu de grandes novidades”. E de fato continua sendo assim: na política, na falta de incentivos para a educação, ciência e tecnologia, e na gestão de muitas empresas.
Mas há quem trabalhe para que os grandes negócios vejam além do óbvio, além do momento presente, de modo que possam agir (agora!) na construção de modelos adaptados a um futuro que chega cada vez mais rápido. É o caso de Tiago Mattos, um dos principais futuristas do Brasil.
Membro docente da Singularity University, do Vale do Silício, Mattos já participou da fundação de diversas iniciativas da nova economia, como laboratórios de big data, plataformas digitais, aceleradoras, escolas de inovação… E também criou sua Aerolito: um negócio que é ao mesmo tempo escola de futurismo, empresa de pesquisa, consultoria e plataforma.
Filho de uma professora e de um consultor de inovação, de quem herdou o amor por novas tecnologias e por compartilhar conhecimento, Tiago Mattos é hoje quem aponta caminhos para grandes marcas do mercado nacional – e cria máquinas do tempo para a alta gestão dessas empresas.
Conheça o pensamento vibrante desse profissional muito à frente do seu tempo, que falou com a nossa reportagem a respeito de cultura digital, o futuro dos negócios e a morte dos planos de carreira.
EMPRESÁRIO DIGITAL – O que é futurismo?
TIAGO MATTOS – É uma disciplina que já existe há algumas décadas, mas que ganhou uma releitura a partir da aceleração tecnológica dos últimos anos. Tenta captar os sinais do futuro que já podem ser detectados no presente, tanto na ciência e tecnologia quanto nos negócios. São fenômenos que vão acontecer no futuro pós-emergente, para mais de cinco anos à frente. Com esses sinais, a gente vai criando hipóteses, modelos mentais, cenários para tentar entender como a sociedade vai se organizar.
O principal objetivo é ter capacidade de interferência, não é um mero exercício de contemplação do futuro. Se a gente não olha para o futuro, não constrói o presente como deve ser. Quem só olha para o presente tem apenas o passado, a história, como ferramenta.
ED – Que tipo de questão um gestor de empresa leva a você nesse âmbito do futurismo?
TIAGO MATTOS – Em cenários de incerteza como o que a gente vive, muitas vezes o gestor está interessado no trabalho do futurista, mas nem sabe que pergunta fazer. Só quer uma visão de futuro sobre o mercado ou liderança, ou ainda o futuro do trabalho. Isso acontece inclusive com grandes empresas. Quando há uma pergunta, a que mais ouço é sobre as peculiaridades do mercado que precisam ser observadas daqui para a frente. Outras perguntas constantes dizem respeito às habilidades das novas lideranças e aos modelos de negócio nesse novo contexto.
ED – E que benefícios a empresa obtém com esses conceitos?
TIAGO MATTOS – Há duas grandes entregas que a gente proporciona. Uma é de sensibilização: explicar, por meio de cursos, palestras e imersões, o cenário que existe hoje e que pode existir amanhã, para promover melhores decisões no presente. A segunda é uma metodologia de inovação chamada “três ondas de impacto”: criamos três círculos concêntricos, nos quais mapeamos a concorrência direta, indireta e transversal. Temos um entendimento de que a maioria das empresas mapeia bem a concorrência direta, mapeia mais ou menos a indireta e quase nada da transversal. Se o executivo é de uma marca de cerveja, por exemplo, ele tende a observar o que as outras marcas estão fazendo, conhece as inovações, mas não sabe o que está sendo feito em todo o mercado de food and beverage (comida e bebida), principalmente nas startups. E muitas vezes ignora totalmente tecnologias que não são desse mercado, mas que afetam food and beverage. O conhecimento que proporcionamos sobre essas duas últimas ondas acaba trazendo muito valor para as empresas.
ED – Tem muita empresa preocupada em passar uma imagem de modernidade, mas que, nas suas práticas, ainda se apega ao passado?
TIAGO MATTOS – Minha impressão é de que as empresas estão mais preocupadas em comunicar mudança do que em fazer mudança. Um bom exemplo é como lidam com “propósito”. Para parecer moderna, muita empresa fez uma releitura da sua missão e agora chamou de propósito. Mas propósito é o que ela de fato quer fazer, é algo interno, não externo para ostentar para as pessoas. O termo “plataforma” é outro exemplo. As pessoas estão mais preocupadas em dizer que têm uma plataforma do que operar de fato num modelo de plataforma..
ED – Com a pandemia, o futurismo mudou do que era ano passado para o que é agora?
TIAGO MATTOS – Mudou, e mudou positivamente. Já em 2018, eu dava palestras dizendo que o trabalho remoto não podia ser encarado como uma coisa do futuro, já era uma demanda do presente.
A pandemia veio validar conceitos que a gente pregava. A necessidade de presença física para realizar o trabalho diminuiu. Em novembro de 2019, eu peguei quase 30 aviões. O Tiago precisava estar lá, olho no olho, para conversar com as lideranças.
Agora eu vejo que muitas vezes isso era um luxo. Hoje consigo fazer o meu trabalho melhor, com mais qualidade de vida, com muito mais entregas, eu me remunero melhor, as empresas pagam menos, atinjo mais pessoas… todo mundo sai ganhando, e isso só está sendo assim por uma circunstância sanitária. Minha dúvida é se essa mudança de olhar vai continuar depois da pandemia.
ED – Com a crise do coronavírus, mais empresas começaram a se interessar pelo futuro?
TIAGO MATTOS – Exatamente, a palavra “futuro” ficou mais sexy. Nunca tanta gente se mostrou ansiosa para entender o que serão os próximos anos. Verbas migraram para o futurismo, mais profissionais procuraram formação nessa área…Sinto um mercado crescente. E a realidade da pandemia também permitiu separar os aventureiros dos profissionais sérios. É muito fácil você pesquisar tendências de futuro em canais de internet, os novos unicórnios… é muito fácil pegar isso e transformar num report. Mas o valor do trabalho do futurista não está nessa organização – está no conhecimento que a gente coloca em cima dessa informação. As evidências da pandemia separaram quem só reproduzia conteúdo de terceiros e quem tem um trabalho autoral e constrói conhecimento
ED – Você separa as empresas em modelos: clássico, digital e pós-digital. Explique essas classificações.
TIAGO MATTOS – A empresa clássica é a estrutura piramidal, de três camadas básicas: alta cúpula, com pessoas que decidem o rumo da empresa; gerenciamento médio, que repassa essa estratégia para a força de trabalho, e quem faz a roda girar.
Na digital, a empresa fica menor porque ser grande nessa economia não é métrica de sucesso. odo mundo quer ser mais ágil, mais lean, mais startup. Ficando menor, tem menos gente na alta cúpula e no gerenciamento médio. Até porque há muita inteligência artificial fazendo task routing – quando eu peço uma corrida no Uber, esse roteamento de pedidos é feito por um algoritmo. E nesse modelo digital a maioria das pessoas é freelancer.
ED – E na empresa pós-digital?
TIAGO MATTOS – Nesse modelo, a empresa é quase uma virtualidade. Primeiro existem os iniciadores, pessoas que escrevem o código da empresa. O gerenciamento médio já é totalmente tecnológico.
Tudo pode ser feito por protocolos, como blockchain ou smartcontacts. Vamos supor que eu tenha uma empresa que legaliza imóveis. Eu recebo o pagamento de uma parte interessada, a papelada de outra parte, e faço as transferências. Isso tudo pode ser feito por meio desses contratos inteligentes, sem a participação humana.
Tudo fica pronto antecipadamente, só esperando o depósito. Nesse formato, os iniciadores podem sair da empresa, porque chega um momento em que não são mais necessários. Por isso eu falo que é quase uma virtualidade. Se os iniciadores não estão mais lá, não tem pessoas no gerenciamento médio e nem empregados, não tem ninguém trabalhando na empresa, é só um monte de códigos na internet.
ED – Que negócios estão nesse modelo pós-digital?
TIAGO MATTOS – As moedas digitais ocuparam esse espaço e já se apresentam como bancos. O bitcoin é bem mais que uma moeda: ele é um Itaú desse terceiro modelo. O Itaú mesmo está no primeiro modelo, das empresas clássicas. O Nubank está no segundo, dos negócios digitais. São empresas que concorrem em meios de pagamento e gestão de ativos, só que em três modelos diferentes. Em outras áreas, também há negócios que atuam no modelo pós-digital, como Spotify, Amazon, YouTube, entre outros.
ED – Você fala em ciclos de aprendizagem em vez de plano de carreira. Por quê?
TIAGO MATTOS – Fomos educados na era industrial. O arquétipo que melhor define essa era é a esteira da indústria, a linha de montagem. A matéria-prima entra, passa pela esteira e sai algo pronto. Na era digital, a gente começa a questionar esse paradigma. Será que esse é o melhor jeito de trabalhar? Quando eu faço uma associação entre um produto numa linha de montagem e um plano de carreira, entendo que vêm de um mesmo modelo mental.
Eu quero ser um executivo de destaque, então construo uma esteira para mim, onde eu entro trainee, depois sou contratado, depois sou coordenador, gerente, diretor, liderança… até sair no fim como um profissional de sucesso. Por muito tempo, acreditou-se que o caminho era entrar na base de uma empresa sólida, ficar muitos anos e se aposentar lá. Foi o conselho que minha avó deu para mim. Mas acho que esse modelo de esteira não corresponde à natureza humana.
ED – Por quê?
TIAGO MATTOS – Porque não conheço uma pessoa que goste de uma coisa só. A lógica de esteira te impede de experimentar atividades atraentes ao longo da sua vida profissional. Aquela frase “faça o que você ama, e você nunca mais vai trabalhar” faz parte dessa lógica de esteira. Você tem de escolher uma coisa só, entrar na esteira e só sair aposentado. Pô, eu gosto de escrever, talvez pudesse ser jornalista. Eu gosto de cozinhar, talvez pudesse ser cozinheiro. Talvez não fosse um bom cozinheiro, mas gostaria da experiência e aprenderia com ela. Seria um ciclo. Por que a gente não se permite experimentar tudo isso? Justamente por aquela lógica de plano de carreira.
ED – A “carreira” tem muito a ver com o modelo clássico de empresa, correto?
TIAGO MATTOS – Perfeito. Já que a empresa clássica tem um formato piramidal, com muita gente na base, algumas pessoas no meio e poucas no topo, e no meu departamento as pessoas têm as mesmas habilidades, eu preciso concorrer, não posso colaborar plenamente, preciso matar meus concorrentes para subir.
Se o modelo da empresa fosse prestigiar as diferenças das pessoas, com o grupo todo subindo, você colaboraria..
Por que eu não posso ser futurista e também ser educador infantil? Ou cineasta? Por que é errado a gente querer ser um monte de coisas se essa versatilidade é mais parecida com o contexto digital?
Não é mais uma carreira, é um ciclo. Vou aprender a ser cineasta por alguns anos e talvez esse ciclo não vire uma carreira. Mas, enquanto eu estiver trabalhando com isso, me desenvolvendo, sendo feliz e remunerado, ótimo. E posso ter vários ciclos rodando ao mesmo tempo. Isso dá mais liberdade, conseguimos nos expressar melhor. Em vez de dizer “eu sou professor, arquiteto ou jornalista”, posso dizer que sou tudo isso, uma pessoa diversa como a natureza humana..
Por que é errado a gente querer ser um monte de coisas se essa versatilidade é mais parecida com o contexto digital? Não é mais uma carreira, é um ciclo. Vou aprender a ser cineasta por alguns anos e talvez esse ciclo não vire uma carreira.
ED – Como nasceu a Aerolito?
TIAGO MATTOS – Em 2010 eu fui convidado para palestrar no TedX Porto Alegre. Era um evento que na época ainda estava começando a ser descoberto pelo público brasileiro. Minha palestra era a de abertura, o que era intimidante. Eu ainda era um palestrante inexperiente, acho que minha apresentação nem foi muito boa.
Mas aquele evento acabou mudando a minha vida porque logo depois de mim palestrou um indiano chamado Dhaval Chadha, e ele falou de futurismo. Falou sobre a escola Singularity, no Vale do Silício, e eu fiquei impressionado. Não fazia ideia de que existisse isso.
Ficamos amigos, e ele me explicou que a Singularity era uma escola montada pela Nasa e pelo Google, que seleciona 80 pessoas por ano para passar semanas aprendendo sobre o futuro. Ele mandou uma carta me recomendando, e fui selecionado. Ali eu realmente vi um mundo de que pouco se falava no Brasil de 2012. Com aquele conteúdo relevante e inovador em mãos, pensei que podia partir para dois movimentos: usar em benefício próprio ou compartilhar com as pessoas. Escolhi o segundo caminho.
A Aerolito nasceu de um desejo de um novo ciclo profissional para mim, da minha vontade de trabalhar na prática com futurismo e da aposta de que esse universo iria crescer. E como cresceu…