À frente da marca no Brasil, o CEO Paulo Camargo explica como conseguiu romper com uma tradição de atendimento padronizado para tornar a rede de fast-food mais jovial, acolhedora e, principalmente, com melhores resultados.
Dois hambúrgueres, alface, queijo e molho especial, cebola e picles num pão com gergelim. Eternizada num jingle, a receita do Big Mac – o maior clássico dos sanduíches do McDonald’s, vendido desde 1968 – é tão imutável quanto pareciam ser algumas das principais características dos restaurantes dessa marca. Há quatro décadas no Brasil, o McDonald’s se tornou uma referência tão forte, que entrou para o imaginário do consumidor como um modelo do que se entende por uma rede de fast-food. Isso inclui uma ideia de linha de montagem na produção dos sanduíches,
parecida com a que Henry Ford inventou para suas fábricas de automóveis. Menu com poucas variações, decorações idênticas nos estabelecimentos e um atendimento tão padronizado que, ao pedir o sanduíche da sua preferência, o cliente já sabia o que ouviria em seguida: “batata acompanha?”.
Mas, se esses processos têm muito mérito em um padrão de qualidade que virou case de mercado, era evidente que a marca não podia parar no tempo. E foi, justamente no Brasil, que algumas novidades ousadas começaram a acontecer, modernizando a imagem do McDonald’s ao mesmo tempo em que tornava a interação, entre os dois lados do balcão, mais
alegre e simpática – mais humana.
O conceito McEvolution trouxe mais que novos projetos arquitetônicos, cores nos uniformes dos funcionários (antes, o cinza prevalecia) e um atendimento mais espontâneo, sem roteiro. Trouxe também um crescimento expressivo na taxa de satisfação dos clientes e, do lado de dentro, uma queda de 50% no turnover e absenteísmo dos funcionários.
À frente dessas inovações que tiveram a coragem, e a inteligência, de mexer em alguns dos padrões sagrados desse ícone do varejo de comida, está Paulo Camargo, presidente da divisão brasileira do McDonald’s, controlada pela Arcos Dourados, a maior franquia independente da marca no mundo.
Confira agora a entrevista exclusiva que o executivo cedeu à reportagem
da Empresário Digital, explicando as surpreendentes revoluções que a marca tem implementado no Brasil – e que têm virado exemplo para o McDonald’s em outras partes do planeta.
EMPRESÁRIO DIGITAL – Como foi a primeira vez que você entrou em
um McDonald’s?
PAULO CAMARGO – Na época eu era um adolescente, em Carapicuíba
[município da região metropolitana de São Paulo]. Eu e um amigo juntamos
dinheiro e, no fim de semana, pegamos o trem e fomos até a esquina da Avenida São João com a Ipiranga. Primeiro fomos ao cinema e depois ao
McDonald’s. Lembro que comi justamente o Big Mac e pensei, “meu
deus, o que é isso…”.
Era bom demais. Fizemos um estudo com neurociência que mostrou que, quando você vê a foto de um Big Mac, ela provoca sensações que nenhuma outra comida consegue, dá uma salivação diferente e ativa outras áreas do cérebro. É interessante como nossa marca traz também uma questão de memória afetiva. Lembro até hoje que, naquela primeira vez, quase tive uma decepção, porque eu era fã do Zé Colmeia e, no desenho, havia aquela torta de maçã gigante. Quando veio aquele doce dentro de uma caixinha, era algo muito diferente do que eu esperava. Mas a decepção terminou assim que experimentei, porque a torta do McDonald’s tem um sabor único.
ED – Todo mundo sabe de cor a receita de um Big Mac. Mas qual a receita para se destacar na liderança de uma empresa que ostenta uma marca tão conhecida e tradicional como o McDonald’s?
PAULO CAMARGO – Gosto de começar essas conversas dizendo que sou o Paulo Camargo, marido da Débora, pai do João Pedro e do Luca. Isso é o que eu tenho certeza de que sou. Então tenho plena consciência de que, no McDonald’s, estou presidente, e procuro realmente fazer meu trabalho como sendo mais um da equipe.
Eu não conquistei nada sozinho, acho que conquistamos juntos um aumento de solidez da marca, que já era muito forte, mas que precisava se atualizar, se modernizar. Acho que meu papel como líder passa por admitir que sou um ser humano incompleto e então dar a possibilidade de as pessoas me completarem no momento em que preciso tomar decisões.
Penso que não tem uma receita única, mas que é preciso reconhecer que você não conhece tudo, que pode ter experiências e muito conhecimento, mas outras pessoas vão ter percepções diferentes sobre o mesmo problema e podem ajudar a chegar às soluções. Então ouço muito e permito inclusive que as pessoas me desafiem.
ED – Essa questão de dar mais liberdade parece que tem ligação com as mudanças que você promoveu. A marca McDonald’s precisava se modernizar?
PAULO CAMARGO – Costumo dizer que ela estava um tanto oxidada ou cheia de poeira em cima, precisava de uma sacudida. E foi o que nós fizemos juntos nesses anos. Cada um dos 50 mil funcionários do sistema McDonald’s no Brasil tem a sua importância na liderança dessa transformação cultural pela qual nós passamos, com o conceito de McEvolution.
Em algum momento, o cliente quis algo mais do que aquele McDonald’s tailorista, fordiano, que repetia sempre as mesmas coisas. E aí nós dissemos para os funcionários: sejam vocês mesmos na interação com o cliente. Se você só manda um atendente fazer e falar as mesmas coisas, está tolhendo o potencial dessa pessoa. O McDonald’s tem uma hierarquia quase militar, mas não quero que esses sejam os princípios do nosso negócio. Tem um mantra que eu gosto de usar que é “vocês são pagos para errar”. A primeira vez que disse isso foi diante de 1.200 pessoas, numa daquelas convenções que a gente faz para os gerentes dos restaurantes. Os diretores olharam para mim e pensaram “o que esse cara está querendo dizer com isso?”. Só que aí eu disse: “mas, por favor, acertem mais do que errem”. O pessoal então começou a rir, relaxou e entendeu a mensagem.
ED – Você trouxe rupturas em um sistema muito padronizado e conseguiu resultados incríveis. Mas, se o McDonald’s é cheio de padrões há tanto tempo, é porque isso também deu resultado, correto?
PAULO CAMARGO – O McDonald’s é o que é justamente por ser grandão e processual. Então não é que a gente vá abandonar isso completamente. Somos líderes em processos, somos estudados pelas melhores universidades do mundo como um case de empresa que era centrada em processo. Nós continuamos centrados em processos, só que agora não apenas pensando no padrão, mas com uma preocupação maior de que ele seja em benefício dos clientes. Somos parte de uma marca global, reconhecida com esse jeitão por quase todo o mundo, pela busca da excelência nos produtos que oferece, e a gente não quer perder isso de maneira nenhuma.
Por exemplo, nós temos as melhores práticas de desenvolvimento de fornecedores. É muito comum, depois de um tempo que o fornecedor está no nosso sistema, ele me procurar para agradecer. E eles dizem: “cara, vocês são muito chatos. Mas essa chatice transformou o meu negócio. Vocês fizeram com que hoje eu esteja preparado para fornecer para qualquer lugar do mundo, para qualquer organização, para fazer exportação. Eu era uma empresa pequena e cresci com vocês”. Isso é muito legal. E só acontece porque há um apoio nas alavancas das vantagens competitivas do McDonald’s.
ED – O que fez você pensar nas mudanças promovidas na marca e no atendimento com o McEvolution?
PAULO CAMARGO – Quando fui contratado, há dez anos, fiquei em um restaurante por seis meses, antes de assumir a gerência desse restaurante. Ao todo, foi um ano de treinamento para eu entender exatamente as bases do negócio. Nesse ano, fui anotando uma série de coisas que achava que a gente podia fazer melhor, e uma delas foi o atendimento, que era robotizado e não cabia nas relações entre pessoas. E pior: os funcionários também não curtiam. Chegamos a essa constatação porque, antes de ser um negócio de Big Macs, o McDonald’s é um negócio de gente, de criar conexões emocionais.
Essa “gente” são 50 mil pessoas, do lado de dentro do balcão, servindo, cuidando e atendendo 2 milhões de clientes todos os dias. Não é um robô que faz ou que monta nossos sanduíches. Então desenhamos o que foi chamado de “cooltura de serviço” [cool vem do termo inglês para “legal”], cuja principal mensagem é “seja você mesmo”.
Você tem que saber os produtos, mas não precisa repetir as mesmas palavras. Em vez de “batata acompanha?”, você pode dizer “as McFritas estão muito gostosas hoje, você não quer experimentar?”. Queremos partícipes de uma cultura em que as pessoas podem falar. Quando os americanos viram que, com essa mudança, melhoramos 26 pontos percentuais naqueles “clientes que se declaram altamente satisfeitos”, eles levaram essa novidade para vários países.
ED – Em uma marca multinacional, marcada por ter tantos padrões, até onde vai a sua autonomia como gestor?
PAULO CAMARGO – Dentro da questão global e regional, não podemos mudar o core. Não posso mudar a receita do Big Mac, por exemplo. Mas eles deixam bem claro o que é core e o que não é. E o que não é, nós temos liberdade para mexer. Sanduíche de picanha provavelmente só tem no Brasil. Foi um sucesso tremendo, que teve uma grande aceitação. Então, no sistema McDonald’s, o gestor também tem esse papel de trazer inovação.
ED – Como foi a conversa com o head de marketing do McDonald’s global, para convencê-lo de que seria uma boa ideia chamar os restaurantes aqui de Méqui?
PAULO CAMARGO – Foi numa quinta feira que trocamos o letreiro de alguns restaurantes, e a ação causou aquele furor todo. E por quê? Porque era inesperado. Como é que aquela empresa quadradinha, tradicional, agora estava mudando dessa forma? Assim que mexemos nas fachadas, o vizinho da frente fez uma foto e postou no Twitter, e a coisa explodiu. De repente, os jornalistas começaram a ligar e perguntar o que estava acontecendo. A primeira resposta que dei, e acho que foi acertada, ajudou a exponenciar essa coisa boa. Falei: diga para os jornalistas que eu perdi o controle e os marqueteiros enlouqueceram. Aí você imagina o que aconteceu na internet.
Claro que foi tudo planejado, a gente já tinha concluído que era uma decisão adequada, mas, coincidentemente, na quinta da semana seguinte, eu tinha uma reunião em Chicago. Fui com o João Branco, que é o CMO aqui do Brasil, e nos sentamos com o head de marketing de lá, e a explicação foi muito simples. Eu não sei você, mas, quando minha mãe queria me dar uma bronca, me chamava de Paulo Sérgio. Às vezes de Paulo Sérgio de Camargo. Mas quando querem falar carinhosamente comigo, usam o apelido. E Méqui é um apelido carinhoso. Ele adorou a ideia e disse: “vai em frente”.
ED – Quais as diferenças mais significativas do consumidor daquele McDonald’s que se instalou há 40 anos aqui no Brasil para o consumidor de hoje?
PAULO CAMARGO – Me lembro que, quando era garoto, nas primeiras vezes que entrei na loja, um fator de diferenciação que eu via era a bandejinha, as caixinhas e a mensagem “tem até ar-condicionado”, que era um diferencial da época. Obviamente, continuamos com o ar-condicionado, mas a experiência do cliente foi totalmente ressignificada.
A pandemia acelerou isso, mas nossas pesquisas já apontavam muito claramente que o cliente quer controlar mais a sua experiência. Quer decidir como vai fazer o pedido, se vai ser pelo aplicativo, no totem, se vai ser pessoalmente. Também quer decidir onde ele vai comer, como ele vai pagar. O cliente quer que o atendimento seja mais rápido, então temos investido muito para reduzir esse tempo. Do começo da pandemia para cá, implementando novas ferramentas de tecnologia e treinamento dos funcionários, diminuímos o tempo do drive thru pela metade. Temos de investir sempre em inovação, conveniência e personalização.
ED – Como trazer novidades atraentes para uma marca tão longeva?
PAULO CAMARGO – As marcas longevas têm coisas boas e ruins. É muito bom lembrar que já estamos há 40 anos no Brasil, mas isso quer dizer que os restaurantes também têm 40 anos, enquanto você tem uma concorrência muito mais jovem chegando, inclusive em edifícios mais modernos. O que fizemos em 2018 foi redesenhar a estratégia. Foi compreender quais eram as coisas boas que estávamos fazendo e quais as coisas não tão boas ou ruins. A coolturade serviço vem daí. Essa estratégia se baseou em três pilares: Primeiro- modernizar os restaurantes, o que passava por cores, por mudar a arquitetura, mas também por investir dinheiro na reforma desses restaurantes, e isso custou alguns bilhões para a gente.
A segunda coisa era mudar o serviço, precisávamos dar um refresh nessa relação, que tinha como objetivo principal fazer com que o cliente ficasse mais feliz, só que acabamos percebendo que isso trouxe muita felicidade para dentro também. As pessoas, sendo elas mesmas, conseguiram se conectar muito mais com o trabalho. Parece romantismo isso tudo, mas eu sou um homem de entregar resultados, e o turnover e o absenteísmo caíram pela metade nesses últimos anos. Você imagina quanto dinheiro isso representou? E, no terceiro pilar, claro, era na comida. Aí vieram as batatas com diferentes molhos, hambúrgueres com ou sem bacon, picanha, sanduíches especiais.
ED – Como é gerir um negócio que durante a pandemia você não sabe se vai ter restaurante aberto ou fechado na semana seguinte?
PAULO CAMARGO – Bom, o McDonald’s está aqui há 40 anos e estará aqui nos próximos 40. Somos um negócio de longo prazo. Os restaurantes são construídos para durar 20 anos, e por isso custam o dobro do valor investido pelos nossos concorrentes. Quando começou a pandemia, em 19 de março de 2020 nós tomamos a decisão de fechar os restaurantes. O governo mesmo só tomou a decisão de fechar no dia 23. Para a gente, não tem outro jeito. A primeira coisa que temos de pensar é que os resultados da semana que vem podem ser importantes, mas a saúde das pessoas vem em primeiro lugar. Para ter sucesso no longo prazo, todos precisam estar bem.
ED – Esse período de pandemia mudou você de alguma forma como gestor e como pessoa?
PAULO CAMARGO – Mudou. A primeira coisa é que nunca acreditei no home office para o nosso negócio. Achava que ele era perfeito para empresas de tecnologia, não para o varejo. Só que a pandemia fez com que eu realmente entendesse o significado da palavra empatia. As pessoas entendem esse termo como “colocar-se no lugar do outro”. E isso é utópico e impossível porque eu não sou o outro e nunca serei.
Se tem algo que é mágico e bonito na nossa humanidade é que nós somos únicos. Então o que eu tenho de fazer é ouvir, observar, respeitar o pensamento diferente. E os outros me fizeram ver que o home office é possível, sim. Aprendi inclusive que algumas pessoas são até mais produtivas dentro da casa delas. Outras continuam preferindo o escritório. Eu mesmo prefiro. Mas, das 400 pessoas que frequentavam nosso escritório em Alphaville, só umas 50 continuam indo para lá. E está tudo bem. Acho também que a pandemia trouxe muita humanização às nossas relações
profissionais, de os filhos às vezes aparecerem na videoconferência.
Acredito que teremos melhores chefes agora, porque ao perceber que do
outro lado tem uma família, uma criança, um profissional com as
dificuldades naturais de trabalhar e cuidar dos filhos no mesmo lugar, os
líderes tendem a melhorar a relação com as suas equipes. Porque, cada vez
mais, vão se identificar com o ser humano que está do outro lado do
vídeo – e que não é um robô numa linha de montagem.