A demanda de chocolate na pandemia aumentou. Mas manter sempre perto os amantes do doce nesta nova realidade – que exigiu um olhar renovado para o e-commerce – foi um dos desafios vencidos por Liel Miranda, Presidente da Mondelez, a companhia dona de marcas como Lacta, Bis, Diamante Negro, Sonho de Valsa e outros hits do varejo brasileiro de snacks.
Liel Miranda estava começando a conhecer a empresa onde seria Presidente quando uma quarentena imposta pela pandemia o obrigou a trabalhar em home office. Parecia o oposto de iniciar essa trajetória com o pé direito, mas o executivo se adaptou à gestão a distância e promoveu novidades que estão gerando mudanças rápidas de processos e recordes de resultados.
Com foco no consumidor e agilidade impressionante em adaptações de logística e migração para o e-commerce, a Mondelez conseguiu emendar dois ótimos períodos de Páscoa para a venda de seus ovos de chocolate, atingindo picos inimagináveis se você levar em consideração que, até o começo da pandemia, a empresa tinha atividade online só para comunicação.
A tradição das marcas sob o guarda-chuva da empresa ajudou, claro. A realidade está ruim demais para você ficar sem um Sonho de Valsa, uma caixa de Bis e outros produtos que fazem parte da memória afetiva do brasileiro. Mas esses produtos eram adquiridos, quase em 100% dos casos, no ponto de venda. Com o pequeno varejo no abre-e-fecha da pandemia e as pessoas com receio de ir ao mercado, a Mondelez soube encontrar caminhos para que, neste período de tantas incertezas, o consumidor continuasse com o conforto psicológico de seu chocolate preferido.
Entenda como a empresa tem se saído tão bem nesses anos desafiadores, nesta entrevista exclusiva que o presidente da Mondelez, Liel Miranda, concedeu à nossa reportagem.
EMPRESÁRIO DIGITAL – Ficou muito marcante no imaginário popular, no cinema, que pessoas com ataque de ansiedade descontam essa angústia se excedendo no chocolate. Como está sendo o período de pandemia para essa indústria, com todo mundo ansioso?
LIEL MIRANDA – O snack cumpre vários papéis na vida e no dia do consumidor. Tem aquele biscoito no café da manhã, aquele chiclete na hora da reunião importante ou em um momento de estresse, uma caixa de Bis do meio da tarde com as crianças ou aquela barra de chocolate à noite, quando acabou tudo, você quer relaxar. Com as pessoas mais em casa durante a pandemia, ao lado da
família, subiu a frequência do uso de snacks. Identificamos que a quantidade de oportunidades para snack, aumentou três vezes durante o dia, na pandemia. Então, do ponto de vista do negócio, tivemos mais demanda.
ED – A Mondelez tem produtos como Sonho de Valsa, Bis, Oreo… Como é ser CEO de uma empresa que faz a felicidade de muita gente?
LIEL MIRANDA – O que é legal na Mondelez é que o nosso portfólio é muito rico e tem muitas marcas associadas ao imaginário de todo mundo. Quem não lembra da infância com um Sonho de Valsa, da juventude com Bis, depois da barra de chocolate Lacta ou Diamante Negro? São marcas
centenárias e que tocam as pessoas. Durante a pandemia, o consumidor voltou para as marcas em que ele confia. Já que ir para o supermercado e ficar exposto agora pode ser encarado como um risco, eu vou comprar lá as marcas que eu já sei que eu gosto ou que a minha família gosta. Então nos beneficiamos por ter esse portfólio de marcas que são não apenas tradicionais, mas que têm grande conexão com o consumidor.
ED – Uma coisa que muita gente não sabe é que uma empresa como a sua se prepara para o período de Páscoa ao longo de um ano inteiro. Como funciona esse processo?
LIEL MIRANDA – A Páscoa é planejada e executada quase como uma operação de guerra. Isso porque essa data representa cerca de 25% do volume de chocolate que vendemos o ano inteiro. O consumo é enorme. E outro fator é que você só produz os ovos de Páscoa para vender nesse período específico. No dia seguinte ao domingo de Páscoa, um ovo de chocolate já não é mais um produto que as pessoas queiram tanto. E quando eu falo desse “período” estou me referindo a duas semanas. Algo entre 80% e 90% do volume de Páscoa é vendido em 15 dias. Nossa operação envolve 10 milhões de ovos, 3 mil lojas e distribuição no Brasil inteiro. Tudo isso demanda um planejamento com um ano de antecedência e com todos os riscos envolvidos. Por exemplo, no ano de 2020, estávamos com a Páscoa pronta em fevereiro. Aí em março começou o distanciamento social. Tivemos de replanejar um monte de coisa.
ED – O que a pandemia mudou nesse processo todo relacionado à Páscoa?
LIEL MIRANDA – Acho que a primeira grande mudança foi o impacto do e-commerce. A Páscoa, como a maioria das atividades que tínhamos antes da pandemia, era basicamente uma venda feita na loja. O que vendemos de ovos de Páscoa em 2019 no online era próximo de nada. Em 2020, com a pandemia, foi quase 10% do volume, e agora em 2021 vendemos quase 15% de ovos de Páscoa pelo online. Isso foi uma grande mudança: saímos de uma compra online próxima de zero para cerca de 15%.
A segunda coisa que mudou muito foi que o consumidor ficou mais sensível ao espírito da Páscoa, porque não podia estar próximo da família. Tivemos uma campanha de comunicação muito mais focada nisso: mostrando que, mesmo que você não possa estar fisicamente junto com a pessoa amada, o espírito de Páscoa poderia ser reproduzido. O tagline de Lacta foi: “cada pedacinho aproxima”. Você está longe, mas pode mandar o ovo de Páscoa da Lacta para quem você ama, onde quer que essa pessoa esteja. E aí montamos toda a infraestrutura para que isso acontecesse.
D – Como tem sido para vocês migrar tanto assim para o e-commerce em um período muito curto?
LIEL MIRANDA – Você tem razão, foi muito rápido. Antes da pandemia, o e-commerce aqui era quase que visto como uma ferramenta de marketing. Era mais para comunicar as marcas. De 2020 para cá, virou um canal de vendas. Sem o e-commerce, não conseguiríamos o resultado que tivemos na Páscoa. E olhe que vendemos 99,9% dos ovos que produzimos, o que é um redorde que nunca tinha acontecido na história da Mondelez. Com o e-commerce, conseguimos fazer o target, a promoção correta para o consumidor na hora certa. Nós adotamos uma estratégia ágil. Se tivéssemos tentado encaixar o e-commerce nos processos da Mondelez, de planejamento, de negociação com o cliente, de aprovação, o negócio não ficaria pronto nem para a Páscoa de 2021, muito menos para a de 2020. O que fizemos foi nos apoiar em um time multifunctional, com autonomia. Então temos tratado o e-commerce como uma célula ágil dentro da Mondelez.
ED – Você acha que esse sistema vai se manter pós-pandemia?
LIEL MIRANDA – Sim, para você ter uma ideia, aqui no Brasil ainda estamos falando de até 6% da nossa venda pelo e-commerce. Nos Estados Unidos, são 20%. Na China, que é o país mais desenvolvido do mundo em
e-commerce, é algo próximo de 30%. Então tem muito espaço ainda para crescer. Não vai crescer 600% por ano, mas vai continuar crescendo. O consumidor vai ficar cada vez mais satisfeito com o serviço, as empresas vão ver cada vez mais oportunidades, vão investir mais. E aí você entra naquele círculo virtuoso em que uma coisa alimenta a outra: tem mais demanda, cria mais supply, mais supply gera mais demanda, e por aí vai.
ED – O que a pandemia mudou nas suas rotinas como Presidente? E o que esse período tem trazido de aprendizado?
LIEL MIRANDA – O que eu aprendi nesse período foi o poder das parcerias, de que a empresa tem de se abrir para o mercado. Quando eu falei do exemplo da Páscoa de 2020, quando tínhamos 10 milhões de ovos para as lojas, mas muito consumidor sem sair de casa, começamos a fazer parceria com lojistas, distribuidores, com empresas de internet e de entrega. Com essa rede que criamos, foi possível fazer a venda da Páscoa online e offline, porque muitas vezes vendíamos online, mas quem estava entregando era a loja ou o supermercado ali da esquina.
ED – Como ficou a relação com o pequeno varejo?
LIEL MIRANDA – Uma outra boa experiência de parceria foi o projeto “Nós”, voltado justamente ao pequeno varejo, porque grande parte ficou fechada, sem movimento, ia quebrar. Aí oito empresas se reuniram e levantamos R$ 370 milhões em condições comerciais para esse tipo de negócio, com desconto, prazo e promoção. Fizemos doações de álcool em gel e máscara. Cerca de 300 mil pontos de venda foram beneficiados por esse programa. E esse foi outro grande aprendizado para mim: o de que as empresas têm de criar ecossistema para ter um impacto maior. Não só do ponto de vista comercial, mas também do social.
ED – Você está na empresa ou em home office?
LIEL MIRANDA – Em home office desde o dia 20 de março do ano passado. E para mim foi duplamente desafiador, porque eu tinha entrado na Mondelez em dezembro de 2019. Estava no meu período de experiência ainda quando veio a quarentena, eu tinha visitado as fábricas uma única vez, ido ao escritório só por dois meses.
ED – A gente sempre pensa no Presidente como uma pessoa inspiradora, que deve ser um modelo para seus profissionais. Não ter essa presença física por causa da pandemia, não estar ali no entorno das suas equipes… Você sente falta?
LIEL MIRANDA – Se você me fizesse essa pergunta há dois anos, eu diria que é absolutamente impossível imaginar um time de liderança operando a distância. Por três meses? Eu diria que talvez fosse possível, mas seria muito difícil. Por seis meses? Impossível, a empresa pararia. E agora, um ano e meio depois, aqui estamos, a empresa continuou operando, tomamos todas as decisões necessárias, os resultados 2020/2021 foram muito bons, estamos crescendo 10% ao ano e tudo isso funcionando remotamente. O que eu acredito é que precisamos preservar os momentos que mais importam. Não precisa ir para o escritório simplesmente para estar lá. Mas, se for para discutir um projeto importante, a troca que existe no presencial enriquece o negócio. Ou quando você precisa dar um feedback de desempenho, a conversa tem que ser olho no olho. Com certeza teremos um modelo híbrido.
ED – Em algumas partes do mundo, a colheita do cacau é feita por menores de idade, em condições de muita opressão e vulnerabilidade. Como a Mondelez lida com isso?
LIEL MIRANDA – A Mondelez é totalmente ligada às questões do ESG, que tratam de meio ambiente, responsabilidade social e governança. Quando eu entrei na empresa, essa foi uma das razões que me atraíram. No que diz respeito à cadeia dos nossos ingredientes, como o chocolate, a Mondelez é comprometida com a sustentabilidade. Temos um programa que se chama “Cocoa Life”, em que a Mondelez se comprometeu a, até 2025, comprar 100% do cacau que a gente usa, desse projeto, que garante a produção de forma sustentável.
Significa que o produtor rural não está desmatando nem usando nenhum produto que possa fazer mal para ele e nem para o meio ambiente. Significa que não está usando mão de obra de qualquer forma que não seja correta. Nosso objetivo é ainda mais ambicioso: queremos que 100% venha do “Cocoa Life” produzido aqui no Brasil. Assim ajudamos na produção de cacau sustentável no país, a preservar a Amazônia, sem contar que muitasuitas áreas que eram de pastagem vão ser recuperadas para produzir cacau por meio do programa.
ED – Como vocês estão investindo em dados no Brasil e o que chamaria a sua atenção numa oferta inteligente de extrair o melhor desses dados?
LIEL MIRANDA – Essa é uma das áreas, talvez junto com o e-commerce, nas quais está todo mundo aprendendo ainda. E não é diferente conosco. O que já sabemos? Primeiro, percebemos que não tínhamos um problema de falta de informação. A empresa tem muito dado, todas as transações que fazemos com nossos clientes são importantes para entender tendências. O que está vendendo mais por região do Brasil, por canal e por tipo de varejo. Essa informação está lá, é só pegar o nosso faturamento. A maioria dos varejos hoje tem programas de CRM, database, com milhões de dados de consumidores. Quem comprou nossos produtos adquiriu mais o quê? E com que frequência? E em que horário? Essa informação também está lá.
ED – O que pode melhorar, então?
LIEL MIRANDA – O grande problema é que esses dados estão espalhados, não estão integrados. Então a primeira coisa que estamos providenciando é garantir que eles se integrem, daí criamos um time corporativo para gerenciar Data e Analytics. Segunda coisa, estamos fazendo a migração de todas essas informações para um grande data lake, criamos uma governança, porque esse é outro problema: o mesmo dado é tratado de forma muito diferente em cada parte da organização. Estamos consolidando os times, os dados, criando governança e começando a investir em software, em sistemas para extrair insights daí. O big data é um grande espelho retrovisor, que mostra o que aconteceu. Precisamos agora ter um GPS, para entender os caminhos que precisamos seguir no futuro.
ED – Falando em dados e extração de insights, tem alguma informação do seu consumidor que você gostaria de saber e ainda não sabe?
LIEL MIRANDA – A informação que mais precisamos neste momento é: dos hábitos da pandemia, o que fica e com qual intensidade. Aumentou a frequência do consumo de snack durante o dia, porque o consumidor estava em casa. Será que agora que as pessoas vão para o trabalho híbrido essa quantidade vai permanecer a mesma? Outra pergunta: os consumidores estavam buscando marcas mais conhecidas, com apelo emocional, qualidade. Será que eles vão manter essa preferência ou vão voltar para um comportamento um pouco mais exploratório?
ED – Nesse seu curto período à frente da Mondelez, onde você enxerga que já fez a diferença na empresa?
LIEL MIRANDA – Eu diria que são três coisas que tentamos fazer e talvez a pandemia tenha acelerado. A primeira é que nos tornamos uma empresa muito mais focada no consumidor: pesquisa com consumidor, entendimento do consumidor, prestar atenção no que a concorrência está fazendo. E o resultado disso é que estamos tendo uma performance excepcional, construindo marcas muito mais fortes. Entre os biscoitos recheados do Brasil, Oreo era a sexta marca do mercado dois anos atrás, agora já é a número um. No caso de Lacta, do ponto de vista de imagem, estávamos em terceiro lugar, e agora estamos em segundo, muito próximo do primeiro. Estamos colocando o dobro do investimento em mídia digital para falar diretamente com o consumidor. Hoje, se alguém posta alguma coisa sobre Trident, temos alguém que pega aquilo e já conversa com a pessoa. Durante o mês do orgulho gay, mudamos o nome da marca, chamamos de Prident [“pride” é orgulho em inglês]. Isso gerou um grande impacto na mídia social.
Outra coisa que tem sido muito importante é a agilidade. Só para dar uma ideia, as inovações normalmente demoravam de 12 a 18 meses. Neste ano, já estamos conseguindo lançar inovação em seis meses. Eu diria que o foco no consumidor e essa mentalidade de trabalho ágil são as duas coisas que fizeram mais diferença nesse último ano e meio sob a minha gestão, desde que a pandemia começou.