SUPERMULHER

Presidente da adidas no Brasil, Flavia Bittencourt conta como ser mãe (de quatro filhos) nunca a impediu de ascender na carreira e de ser uma apaixonada por trabalho – ela adora segundas-feiras.

Monotonia não faz parte do vocabulário da executiva Flavia Bittencourt. Engenheira química por formação, ela enveredou pelo universo dos negócios logo cedo, levando seu talento e energia inspiradora a setores tão diversificados quanto o bancário (Unibanco), o de telecomunicações (Oi) e de cosméticos (Sephora).

Desde maio de 2019, ela é Presidente da adidas no Brasil – a primeira mulher a chegar ao comando máximo na história da empresa, sendo que, em metade desse tempo, tem encarado o desafio de conduzir a marca através das águas turbulentas da pandemia do coronavírus.

Como se não bastasse, paralelamente ela atua como conselheira da Tim e da BRF (das marcas Sadia e Perdigão), cuida de quatro filhos, pratica corrida quase todos os dias e joga tênis.

Qual o segredo para ela dar conta de tantas atividades? Muito bom humor e paixão pelo trabalho – principalmente em equipe. Confira a seguir a entrevista exclusiva que Flavia cedeu à reportagem de Empresário Digital e saiba mais sobre a visão de gestão – e de vida – da executiva que sabe priorizar o que é importante e se motiva a cada começo de semana de trabalho.

EMPRESÁRIO DIGITAL – O que levou uma engenheira química à presidência, aqui no Brasil, de uma das marcas de artigos esportivos mais conhecidas do mundo?

FLAVIA BITTENCOURT – Normalmente as pessoas entram e ficam na mesma indústria, tornando-se especialistas. Eu não acho isso interessante. Sempre chega uma hora em que quero mudar de problema, mudar de pergunta, quero entender outras estratégias e outros negócios. O que me apaixonou ao longo da minha carreira inteira foi tentar entender o consumidor final: o que ele compra, por que ele compra, quais são seus hábitos, por que ele muda de hábito… sua jornada do começo ao fim. E quero entender o consumo de produtos e serviços diferentes: telecomunicações, alimentos, moda, produtos bancários, de beleza…

Um mesmo consumidor se comporta de formas diferentes nessas jornadas.

A linha condutora na minha trajetória foi tentar entender isso. Então trabalhei oito anos em várias áreas do mercado financeiro, em seguradora, em cartão de crédito, em banco para grandes empresas, em banco para pessoa física…

ED – Dentro dessa miríade de segmentos, o que mais atraiu você?

FLAVIA BITTENCOURT – Eu vi que minha paixão está muito mais voltada para vender para pessoas do que para companhias. Me interessa mais o CPF que o CNPJ. Trabalhei com consumidores de baixíssima renda e descobri o quanto a forma de consumo das classes C e D é diferente do que ocorre nas classes A e B: o que leva você a comprar uma marca ou outra, em que contextos você valoriza o preço, a qualidade, o produto…

ED – Você costuma ficar bastante tempo nas empresas pelas quais passa…

FLAVIA BITTENCOURT – Quando fui trabalhar em telecom, fiquei dez anos nesse mercado. Acho que, para ver se suas apostas deram certo, você precisa ficar mais tempo. Entrei para tocar a parte de telefonia móvel e acabei lidando com todos os produtos. Era uma marca que praticamente não existia e, quando saí, já era a maior empresa de telecom do Brasil.

Minha paixão está muito mais voltada para vender para pessoas do que para companhias. Me interessa mais o CPF que o CNPJ.

Flávia Bittencourt

Depois fui ser presidente da Sephora, minha primeira presidência. Na época eu não entendia nada de varejo e nem de beleza. Acabei ficando seis anos lá. Metade desse tempo como presidente para a América Latina. Aí tive a oportunidade de vir para a adidas, que junta duas coisas que eu gosto: poder ser presidente de uma empresa com uma marca global e estar ligada a esportes. Eu amo esportes.

ED – Em um exercício de autoconhecimento, que competências suas mais contribuíram para você ser essa profissional bem-sucedida?

FLAVIA BITTENCOURT – A primeira coisa é que eu adoro trabalhar. Eu adoro segundas-feiras, gosto das empresas, gosto das pessoas. É essa energia que me move. Sou muito apaixonada pelo que eu faço, isso é uma característica muito forte minha.

Outra coisa: acredito que ninguém consegue fazer nada sozinho. Desde o começo da minha carreira, sempre gostei de trabalhar em grupo, ter projetos em comum, ter metas desafiadoras para encarar em equipe. A terceira coisa é que sou pragmática e hands on. Sou analítica, gosto de dados, mas também confio na minha intuição e gosto de colocar a mão na massa. Vou para as lojas e fico vendo o consumidor comprar, tenho uma curiosidade grande sobre o que os consumidores e a nossa equipe fazem no dia a dia. Acho que o fato de eu ser bem-humorada também ajuda. O ambiente precisa ser leve. Se você vai passar 12 horas do dia no seu trabalho, que seja ao lado de gente inteligente e interessante. Essas são as coisas que me fazem feliz.

ED – Você foi uma mãe jovem e isso não a impediu de ter uma carreira vitoriosa. Que conselho você daria para outras mulheres que têm a ambição de chegar aonde você chegou?

FLAVIA BITTENCOURT – Muitas vezes me perguntam em qual modelo feminino eu me inspirei. Mas não havia esse modelo. Não tinha muitas mulheres presidentes de empresa nas quais eu pudesse me inspirar. Tanto que, quando eu comecei minha carreira, nunca pensei em ser presidente. As coisas foram acontecendo. Ouvi muito, ao longo dos anos, mulheres achando que precisavam fazer uma escolha entre ser mãe e ter uma carreira. Eu mesma, quando engravidei da minha primeira filha, aos 22 anos, pensei: “acabou a minha carreira”. E olhe que engravidei do meu segundo filho já aos 24. Então o que digo para as mulheres é que elas não precisam desistir.

de nada. Cuidei dos filhos desde o início da minha trajetória profissional, e isso não me impediu de chegar aonde cheguei. Embora isso inclua, sim, fazer algumas escolhas: você sabe que, em alguns momentos, você não vai poder assistir à apresentação de balé, participar de algum aniversário… Como eu sou carioca e comecei minha carreira em São Paulo, eu não tinha minha mãe perto para ajudar com as crianças, não tinha grana para ter babá, meu marido viajava para caramba… era eu comigo mesma.

ED – Como você superou tudo isso?

FLAVIA BITTENCOURT – Nessa hora você precisa ter muita clareza sobre quais são suas prioridades, o que faz diferença na sua vida. Muitas vezes tive que sair de reunião para pegar o filho no colégio, mas voltava a trabalhar depois que os filhos dormiam. Nunca deixei que ser mãe fosse uma desculpa para não correr atrás do que eu queria profissionalmente. Com filhos pequenos, ainda fui fazer MBA nos fins de semana. Você tem de priorizar. Para quem tem pouco tempo, é muito importante ver televisão? Então corta a TV.

É muito importante navegar nas redes sociais? Então corta as redes sociais. É essencial ter duas horas de almoço? Para mim não é, posso comer um sanduíche na minha mesa. O importante para mim é aproveitar o tempo para levar meus filhos à escola e estar em casa antes da hora em que eles vão dormir.

Meu conselho para as mulheres é que parem para refletir e façam suas escolhas.

Flávia Bittencourt

É passar o final de semana com eles. É importante para mim fazer exercício. Então acordo às 5h da manhã para me exercitar antes que o resto da família acorde. Meu conselho para as mulheres é que parem para refletir e façam suas escolhas. O que não é importante, você corta da sua vida.

ED – Hoje você está conciliando a presidência da Adidas com a participação em conselhos de grandes empresas, tem quatro filhos, arruma tempo para o esporte… Qual a receita para ser essa supermulher?

FLAVIA BITTENCOURT – Vou pensando desde as pequenas produtividades. Nem todas as vezes eu vou conseguir ir à manicure. Corto o cabelo para não precisar fazer escova. Quanto ao esporte, por exemplo… se eu precisasse sair de casa para ir a uma academia, pegar trânsito, perder tempo no deslocamento, não conseguiria encaixar o exercício na minha vida. Por isso eu gosto de corrida. Saio de casa já correndo, não perco tempo.

Então é você ir escolhendo as coisas para que sejam fáceis. Um segredo que ajuda muito na minha vida é o meu marido. Muitas vezes é ele quem vai ao dentista das crianças, vai à reunião na escola… Outro dia eu estava conversando com um presidente de uma empresa e ele estava me dizendo o quanto entendia que as funcionárias precisavam de um tempo para levar o filho ao médico, para buscar no colégio… E eu falei: “isso é bacana, mas você também dá esse tempo para os executivos homens levarem seus filhos ao médico, à escola?”. Ele estranhou e disse que era só para as mulheres.

Mas eu disse que os homens precisavam desse tempo também para que as mulheres pudessem trabalhar. A sociedade precisa ver os papéis de homens e mulheres como iguais para que elas possam ter as mesmas oportunidades no trabalho.

ED – Como é tratado o tema da diversidade dentro da adidas e como você vê essa questão?

FLAVIA BITTENCOURT – É uma evolução. Eu sou a primeira presidente mulher da adidas no Brasil, o país do futebol, um esporte dominado pelos homens. Ganhei minhas primeiras chuteiras na Adidas, entrei em um estádio para jogar bola, já na Adidas. Acho que não tem nada que a gente não possa fazer. A Adidas se propôs a isso. Há alguns anos a gente abriu o tema de diversidade e inclusão, eu entrei na Adidas porque o meu chefe queria que houvesse alguma mulher entre os entrevistados finais. Eram dois homens e eu, acabei conquistando a vaga.

Hoje tenho orgulho de dizer que, na questão de gênero, a gente tem mais de 40% da liderança a cargo de mulheres. E a gente vem trabalhando outros pilares da diversidade: de raça, de orientação sexual, de geração… é muito legal, porque os próprios funcionários se interessam e dizem que querem colaborar. As propostas vêm deles, e assim a forma de compartilhar conhecimento é muito mais genuína do que se viesse só da liderança. Hoje líderes e não líderes estão envolvidos e entendendo que diversidade e inclusão são fundamentais se quisermos ter uma companhia mais criativa, que entenda mais o consumidor, que tenha diferentes pontos de vista, que seja mais inovadora.

ED – Metade do tempo em que você está na Adidas foi sob uma pandemia. Como foi para você ter de lidar com essa crise do coronavírus bem nesse momento de se consolidar na gestão da empresa?

FLAVIA BITTENCOURT – Como é uma crise global, todo mundo precisou parar e tentar entender o que estava acontecendo. Tivemos que pensar como teríamos caixa com as lojas fechadas, como potencializar o e-commerce, reforçamos o digital com vendas por Whatsapp, pelo Rappi, o cliente passou a buscar no drive-thru. Teve um lado bom de repensar o estoque, rever importação e exportação, trabalhar junto com as fábricas no Brasil para garantir a produção se a gente precisasse…

As companhias estão reagindo e eu diria que o brasileiro em geral, está sabendo reagir muito rápido. Nossa vantagem em relação aos europeus e americanos é que estamos acostumados com crise aqui na América Latina. Difícil para o latino é ficar trancado em casa, e a gente não tinha uma política de home office na Adidas, era todo mundo no escritório mesmo.

ED – Quais foram as maiores preocupações relacionadas à equipe?

FLAVIA BITTENCOURT – Foi principalmente garantir segurança para todos e conexão para quem fica em casa, para que pudessem continuar trabalhando num ritmo que fizesse sentido. E proporcionar uma rede de suporte interno e também para apoia nossos consumidores. Fizemos uma série de lives para quem estava em casa fazer exercício, não enlouquecer parado num apartamento. Aumentamos a hora do almoço, porque no home office não é só o tempo de se alimentar, você tem que preparar o almoço, dar para os filhos… então foi um momento de mudança e de sermos líderes mais empáticos, de entender que as pessoas estão com medo – de perder o emprego, de ficar doente, de perder alguém da família para a doença, de não conseguir estudar com seus filhos em casa… precisamos identificar, na liderança, como fazer essas entregas como companhia, mas também como seres humanos. Esse foi o maior aprendizado e percebemos resultados rápidos. O time entendeu, se engajou, conectou. É preciso entender quando tem choro de criança ou latido de cachorro na videoconferência, porque em casa é assim mesmo e estamos todos no mesmo barco. É preciso ter leveza.

Como é uma crise global, todo mundo precisou parar e tentar entender o que estava acontecendo.

Flávia Bittencourt

ED – Nesse momento tão difícil, a adidas teve um recorde de satisfação dos funcionários. A quais medidas você atribui esse resultado?

FLAVIA BITTENCOURT – Foi muita transparência, muita conversa. No começo da pandemia eu fazia uma reunião com meu time todos os dias, logo de manhã, para contar o que prestava acontecendo, que decisões ecisavam ser tomadas, responder dúvidas… eles repassavam para os times deles, e assim a gente ia cascateando as informações. Fiz várias reuniões virtuais em que logo ia dizendo “gente, eu não tenho pauta nenhuma, estou aqui para responder a qualquer dúvida que vocês tenham”. E muitas vezes precisei dizer “não sei, vamos descobrir juntos”. Como líderes, a gente acha que precisa sempre ser super-heróis, sempre ter todas as respostas. Mas, como essa crise é uma situação que nunca ninguém tinha vivido, havia muita coisa que a gente não sabia. E eu respondi a pergunta difíceis. “Flávia, vai ter demissão?”

“Olha, eu vou fazer de tudo para que não tenha. Mas não posso prometer que não vai ter. Esse vai ser o último recurso que eu vou usar”. Então essas conversas honestas, transparentes, e estar disponível para as pessoas, fizeram muita diferença.

ED – Neste momento de pandemia, que competências você acha que precisaram ser potencializadas nos gestores de maneira geral?

FLAVIA BITTENCOURT – Muito foco. Numa crise dessas, você tem que parar de fazer grandes planos e focar no que é urgente. E houve muita coisa urgente, muito ajuste de rota. Como é que a gente toma decisões pragmáticas? Como é que a gente se conecta com nossos times e dá prioridade a eles? Como é que, nesse momento, a gente pode ser inovador?

Como que a gente tem confiança de desenhar novos cenários, escolher um cenário e lutar para que se realize? Precisa também ser mais rápido. E numa multinacional é muito difícil ser rápido. Normalmente você tem de aprovar com 15 escalões acima de você. Numa crise assim, precisa ser diferente, reagir mais rapidamente, testar coisas. Não dava tempo para a gente avaliar todos os dados, imaginar, discutir… precisamos de skills um pouco diferentes. E escutar muito o consumidor. Você vê a quantidade de lives com CEOs, diretores, executivos… de diferentes empresas, de diferentes setores. Porque todo mundo estava buscando informação, todo mundo querendo entender e compartilhar. Alguns temas que já estavam nas agendas acabaram sendo aprofundados, como sustentabilidade, meio ambiente, diversidade e inclusão. São temas importantes que estavam meio marginalizados, mas que vieram para a superfície porque todos queríamos, precisávamos, aprender mais e fazer coisas novas. E nós aprendemos..

Outubro 2024

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