Sem bola de cristal, mas movido por um dia a dia sem rotina e atento à disrupção, o futurista Luiz Candreva, head de inovação da Ayoo, fala sobre os desafios das empresas num amanhã cada vez mais transformador e complexo de conceber.
A popularização da inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, veio provocar o pensamento de todo mundo a respeito do amanhã. O que acontecerá com os empregos? Quais os desafios entre estimular uma tecnologia que pode trazer inúmeros benefícios, sobretudo à produtividade, e manter uma sociedade em equilíbrio socioeconômico?
Hoje, as transformações são cada vez mais rápidas, tornando mais complexa a tarefa das empresas em prever cenários do porvir e se preparar para as rupturas. Felizmente, para ajudá-las, há profissionais fora de série como Luiz Candreva.
Head de inovação na Ayoo, Candreva é o tipo de especialista que as companhias procuram quando precisam descortinar horizontes: um futurista. Nesse papel, ele contribui apontando para o autoconhecimento das organizações, questionando sobre suas dores, uma reflexão que vai levar às soluções do médio e longo prazo.
Esse olhar único e de um raciocínio muito à frente do tempo da maioria das pessoas, Luiz Candreva compartilha aqui, nesta entrevista exclusiva para a nossa reportagem.
EMPRESÁRIO DIGITAL Qual é o papel do futurista ao auxiliar as empresas a criar estratégias para o futuro?
LUIZ CANDREVA O futurismo parece novidade, mas já existe há muito tempo, sobretudo nos Estados Unidos, que inclusive tem essa função estabelecida dentro dos quadros das empresas. O papel de um futurista, basicamente, é desenhar cenários de futuros possíveis, desejáveis e prováveis a partir dos dados, das tendências. E aí estamos falando sobre dar longevidade para a relevância das organizações. Todo mundo ganha ou perde relevância todos os dias, mas agora isso acontece com uma velocidade muito maior, e esse é o grande desafio. Caso apareça alguma coisa interessante no mercado, o que a gente pode fazer para aproveitar isso ou minimizar riscos futuros? Por isso, o futurismo é estratégico.
EMPRESÁRIO DIGITAL Por que o futurismo agora está na moda?
LUIZ CANDREVA Existe uma contextualização histórica importante para isso. Na década de 1980, qual era o símbolo de sucesso? Era meio que aquela coisa de Wall Street, gravata fininha… Já no final dos anos 1990, começamos a falar de ponto com (.com). A empresa tem de ser digital. De 2010 para 2020, estamos falando de mentalidade de startup, de empresas que são ágeis e conseguem desenvolver velocidade. Acontece que tudo isso se tornou default. Um evento catalisador como a pandemia fez com que muita coisa fosse acelerada, e de uma maneira muito transversal. Então, se tudo aquilo que era um diferencial, “pô, eu sou bem digitalizado, eu sou ágil o suficiente, eu adapto o processo rapidamente, etc.”, virou default, as empresas começaram a olhar para o próximo passo: o amanhã. Porque hoje todo mundo já está pareado. A Procter & Gamble e a Unilever entregam com qualidade, podem ter falhas aqui e ali, mas geralmente fazem com uma qualidade absurda. Atualmente as empresas podem ser muito boas no que fazem, mas se esquecem de olhar para o amanhã.
EMPRESÁRIO DIGITAL E como equilibrar essa boa performance do presente com o olhar para o amanhã?
LUIZ CANDREVA Com ambidestria. É um conceito que não é novo, mas está em voga agora. É você equilibrar a receita no presente com a relevância no futuro. E como você equilibra essas duas coisas? Trata-se de um grande desafio porque os incentivos e os processos são todos desenhados para as métricas do hoje. O desafio é entender como a gente se capacita para olhar para o amanhã, aproveitar as oportunidades, acelerar esse processo, e trazer isso para executar agora. As empresas que conseguem fazer isso com mais facilidade, com mais fluidez, preponderarão dentro do mercado. Pouco a pouco elas vão aumentar suas chances de sucesso.
EMPRESÁRIO DIGITAL Como é que você vê o futuro dos negócios diante do rápido avanço tecnológico?
LUIZ CANDREVA Eu costumo trazer seis lições sobre o futuro quando eu vou conversar com alguma empresa, e a primeira delas é justamente não fazer juízo de valor. A nossa opinião importa muito pouco – a minha, a sua, a de todo mundo. O que importa mesmo é como essas coisas de fato acontecem no macro. Se nós temos influência, o que podemos fazer de positivo? Se não temos, como navegamos em paralelo? Eu costumo dizer que o futuro é de quem sabe navegar no caos, de quem fica confortável nele… Porque o caos é inevitável. Então é mais importante a gente entender como é que eu maximizo o meu retorno ou diminuo o meu risco dentro do todo.
EMPRESÁRIO DIGITAL Você constantemente fala sobre não óbvios, sobretudo no contexto de oportunidades para as empresas. O que são esses não óbvios e como as empresas podem se valer deles para alcançar melhores resultados?
LUIZ CANDREVA Não óbvios, para mim, são as oportunidades que estão escondidas dentro de uma disrupção original. Na Ayoo observamos que há três pilares relacionados a isso. O primeiro são as dores, necessidades e anseios humanos. Qual é o fator humano envolvido nisso? O segundo, a tecnologia. Às vezes, quando eu falo em tecnologia, me refiro a big data, IA, metaverso… Mas é qualquer coisa que usamos para resolver um problema. No futuro, vamos parar de falar em eletrônica e começar a tratar de virtualização. E o terceiro pilar é a conjuntura. Quando temos esses três pilares, conseguimos uma grande transformação.
Então o nosso trabalho, muitas vezes, é identificar quais pilares já existem na empresa e qual está faltando. Quer ver um exemplo sobre isso? Por que a gente não fazia trabalho remoto antes da pandemia? Porque a conjuntura não exigia. Mas as tecnologias para isso já existiam, assim como houve as dores humanas. Agora vai para 1994, por exemplo, e imagina que acontece uma pandemia. Você teria a dor humana, a mudança na conjuntura, mas não teria a tecnologia para o modelo remoto ser viável. No entanto, provavelmente haveria uma pressão para que uma empresa criasse uma ferramenta de comunicação, ainda que meio mambembe. Imagine o quanto essa empresa sequestraria de relevância dos outros players… Quanto ela conseguiria de oportunidades por ter abraçado essa nova tecnologia e ter sido aquela que fez o gatilho… A verdade é que, quando acontece uma disrupção, embaixo dela aparecem oportunidades infinitas, e os não óbvios formam um véu que nós levantamos sobre elas.
EMPRESÁRIO DIGITAL Pode dar um exemplo real disso?
LUIZ CANDREVA Sim. Há vários. Um especialmente interessante é o Hyperloop, um trem de altíssima velocidade que faz, por exemplo, São Francisco a Los Angeles, uma viagem de seis horas de carro, em 15 minutos; São Paulo a Brasília em 10 minutos. Isso já existe hoje para transporte de cargas entre Emirados Árabes e Catar, e testes para transportar pessoas também. Esses testes vêm sendo feitos em desertos americanos. Agora, esse trem vai impactar diretamente as companhias aéreas. Ele é muito mais rápido, produz energia por onde vai, tem uma passagem mais barata, em média, do que a de um avião. Então naturalmente você vai quebrar o mercado das companhias aéreas. Só que também vem junto com grandes oportunidades. Imagine os benefícios para a rede hoteleira… Como fica o valor de uma estadia num hotel em Fortaleza se você tem a possibilidade de ir e voltar no mesmo dia? Você vai aproveitar a praia e voltar para São Paulo em questão de minutos. Como é que fica o valor dos imóveis de maneira geral? Porque você muda a dinâmica urbana e todo o conceito de turismo com essa transformação.
EMPRESÁRIO DIGITAL Como os empresários e executivos podem identificar os sinais de transformações e se preparar para o futuro?
LUIZ CANDREVA Há diversas metodologias, mas o norte é identificar qual a dor que você vai resolver. O jornal era a melhor maneira de levar a informação quando foi criado. Era rápido, era barato, distribuía de maneira relativamente atualizada, de um dia para o outro. O modelo de negócio? Publicidade. Mas o jornal ficou preso nesse sistema de vender a atenção das pessoas por publicidade. E assim as empresas foram sendo corroídas porque hoje a informação é commodity. Tudo o que estamos falando agora tem disponível no YouTube. O difícil é a curadoria, o selo, o filtro… Você dar a chancela para aquilo que está sendo falado. Então entender qual é a dor que você resolve permite ter mais longevidade, porque a solução muda com uma frequência enorme, mas a dor geralmente permanece. Identificar sinais implica se perguntar sempre como resolver uma dor original da melhor forma possível em determinado tempo, com as tecnologias que estão aparecendo, com as mudanças de consumo na sociedade. Fazendo essa pergunta, você vai sempre desafiar o seu modelo de negócio, porque o modelo de negócio vai parar de ser a melhor opção que você tem em algum momento. O melhor modelo é vender conteúdo neste mundo que já é cheio de conteúdo? Claro que não.
EMPRESÁRIO DIGITAL O que diferencia uma tendência de algo realmente impactante?
LUIZ CANDREVA Quantas empresas têm um podcast? Um monte. Mas ninguém sabe me explicar por que tem um podcast. Potencialidade não significa estratégia. Os Estados Unidos podem invadir o México, mas eles devem fazer isso? Muitos executivos estão pensando “caramba, o pessoal todo no metaverso e eu fiquei de fora”, “nossa, a galera entrou no IA e eu fiquei de fora”. Há esse peso no ambiente corporativo, que traz uma percepção de risco pessoal.
Então, nesse mundaréu de oportunidades e tecnologias, o maior desafio é escolher e também saber falar não. Isso remete um pouco à minha resposta anterior, inclusive: qual é a dor essencial que essa tendência resolve? As empresas maiores acabam fazendo muitas dessas coisas e desperdiçando o recurso. Daí a importância de ter uma startup mentality… Na startup, se ela não for só naquilo que é essencial, ela morre no processo. É por isso que as startups conseguem geralmente ter um foco e um desapego ao modelo de negócio muito grande. Se ela tiver apego ao modelo, ela morre junto com ele.
Esse apego ao modelo de negócio é um câncer corporativo. Olhando para a dor original que você precisa resolver, é possível abraçar a tendência que vai dar retorno para o seu negócio.
EMPRESÁRIO DIGITAL Quais são os maiores desafios do futuro?
LUIZ CANDREVA Os maiores serão os desafios éticos. Imagine que um carro autônomo se depara com uma situação em que, se virar à direita, atropela uma senhora idosa, à esquerda, uma criança atravessando a rua. E ele precisa virar para um dos lados. Qual dos dois ele atropela? Essa é uma decisão puramente filosófica, ética, humana. Se você fizer essa pergunta na Ásia, a resposta será atropelar a criança, porque lá há um respeito muito grande pelo ancião, o sábio experiente. No Ocidente é diferente. E não tem certo e errado. O problema não é técnico, o problema é humano. Como é que eu programo o carro para tomar uma decisão dessas? A questão ética passa pela IA generativa também. Sabemos que muitos empregos vão desaparecer por causa dela, e isso é natural quando surge uma tecnologia nova. Só que agora está acontecendo muito rápido. Então o grande desafio do mundo será como equilibrar para que grande parte da população não caia num buraco com a evolução da IA. E isso precisa ser pensado agora, não depois da transformação.
EMPRESÁRIO DIGITAL Temos vivido mudanças de paradigmas como o aumento de longevidade, questões como a cibersegurança e as ameaças virtuais, deepfakes, o impacto dos vieses na programação das inteligências artificiais… Como as empresas devem se mover para lidar com tudo isso?
LUIZ CANDREVA Historicamente, a humanidade sempre teve uma boa capacidade de discernir o que é verdadeiro do que é falso. Isso permitiu que, evolutivamente, chegássemos até aqui e formássemos a sociedade como um todo. Agora caminhamos para um ambiente muito próximo de não entender o que é falso, mas, para mim, o maior desafio será não saber o que é verdade. Há tecnologias que permitem que você emule ser alguém, ter a voz de um indivíduo com qualquer idade, mudando e adaptando… E não saber o que é verdade tem um efeito pernicioso para a sociedade inteira. Porque, invariavelmente, existe a busca pela verdade. Numa guerra, como parece iminente entre Taiwan e a China, dependendo da informação que for solta daqui e dali, ela incita revoltas populares gigantescas. Isso é um dos outros grandes desafios éticos que a gente tem pela frente. E falamos pouco sobre cibersegurança no Brasil, mas a terceira maior economia do mundo é o cyber crime; só perde para Estados Unidos e China. E o Brasil é um dos países mais digitalizados, portanto é um prato cheio para esse tipo de ataque. Nesses casos, as empresas precisam investir em capacitação para responder a esses crimes e fakes. Quanto à longevidade, já há uma técnica de recorte de DNA capaz de gerar seres humanos imunes a tudo quanto é doença imaginável. Então o que impede um oligarca russo doidão de fazer um super-humano? E aí temos outro desafio ético: como ter um equilíbrio numa sociedade em que convivem super-humanos com Homo sapiens comuns? Não terá mais como suplantar as desigualdades econômicas e de oportunidades. A melhor maneira de lidar com isso é aumentar o acesso de uma forma que não tenha desigualdade. Num mundo em que todos têm o superpoder de ser mais inteligente, saudável, não adoecer, ninguém é super-herói.
EMPRESÁRIO DIGITAL Você tem uma rotina como futurista? Como seu lado explorador influencia a sua abordagem de futuro?
LUIZ CANDREVA Rotina é um negócio que faz algum tempo que eu não encontro mais, o que é muito bom por um lado, mas tem os seus percalços também. A minha rotina é de muitas viagens. Em 2022, por exemplo, eu peguei 171 voos, dá para perceber que eu passo boa parte do ano viajando. Inclusive, por isso, eu não tenho mais nem residência fixa. Eu não moro em lugar nenhum. Já faz mais ou menos um ano e meio… Percebi que eu já ficava muito em hotéis, passava só cinco dias por mês de fato em casa. A minha falta de rotina me impõe um desafio diferente. O profissional do futuro é aquele que consegue resolver problemas complexos. E a melhor maneira que eu encontrei para isso na vida é o que eu chamo de experiências cruzadas: a nossa capacidade de trazer experiências da nossa vida pessoal e aplicar para resolver problemas profissionais ou vice-versa. Recentemente eu fiz uma das trilhas mais perigosas do mundo, no Havaí. Outro dia, fui aprender a fazer acrobacia em biplanos, um avião de 1935, na Califórnia. O que isso tem a ver com o futuro? Tem a ver com desafios que você encontra e habilidades que tem que desenvolver para aquele momento. Isso vale para várias situações. Às vezes, no dia a dia empresarial, você pensa “cara, como é que eu consigo acalmar o meu eu, o meu ser, para conseguir fazer isso?”. Então, essas habilidades vão compondo um conjunto, um repertório, que permite que você tenha uma caixa de ferramentas maior para resolver o amanhã.