O erro da falta e o erro do excesso
Na era da performance, errar é inaceitável. O erro não é mais parte do processo formativo, mas um desvio intolerável num sistema que exige eficiência contínua, produtividade mensurável e resultados imediatos. A racionalidade instrumental, como apontada por Adorno e Horkheimer, reduziu o sujeito a uma função, e o erro, nessa lógica, é uma falha de função, não um sintoma humano.
O ideal performático se estrutura sobre a negação do limite: do corpo, do tempo, da dúvida, da cultura. O erro é estrutural à condição humana. Quando a cultura da performance tenta eliminar o erro, ela tenta eliminar o sujeito, e o substitui por um eu imaginário, ideal, maquinal, uma fantasia.
Nietzsche já denunciava a moral dos escravos, que transforma a fraqueza em culpa. Na era da performance, o erro é tratado moralmente: quem erra, falha no caráter. Há vergonha, há uma corrosão subjetiva. O erro deixa de ser evento para se tornar identidade: “eu sou o erro”. Do suplício medieval ao cancelamento na internet, se instala a culpa, não como motor ético, mas como dispositivo de controle.
Lidar com os erros na era da performance exige reinstaurar uma ética do limite. Isso implica recusar a fantasia de completude, aceitar o inacabado, sustentar o mal-estar, como propõe a psicanálise desde Freud até Winnicott. Significa deslocar o olhar da culpa para a responsabilidade: não se trata de acusar ou se justificar, mas de elaborar. Só se elabora o que se encara. Há apenas a travessia de reconhecer que errar não é o oposto de acertar, mas o que permite que algo de novo surja. O erro é furo no automatismo, é quebra no circuito da repetição, é chance de subjetivação.
É do fascínio pela performance que surge a inteligência artificial, e, com ela, uma nova camada de tensão: a da confiança nas máquinas que erram. A IA, hoje, alucina. Produz com lógica, mas sem verdade. Gera respostas com fluidez, mas sem compromisso com o real. Alucinar, no vocabulário técnico, é simplesmente oferecer uma informação falsa com aparência de certeza. Mas essa definição é precária. Porque o que está em jogo não é apenas a confiabilidade factual, mas a transferência da responsabilidade epistêmica: quem responde quando a máquina erra?
O erro da IA, diferentemente do erro humano, não é psíquico, nem simbólico, nem ético. É estatístico. Não nasce da falta, mas do excesso, excesso de dados, de correlações, de padrões. A IA não deseja, não hesita, não duvida. Sua alucinação não é lapsus freudiano, não é síntoma de conflito interno, é ruído operacional.
A IA não é autônoma; ela é extensão. Amplifica o que encontra, replica o que aprende, reflete o mundo que a treina. Se há autonomia nela, é derivada: só será ética, justa, criativa, se houver ética, justiça e criação em quem a conduz. A IA não se responsabiliza. Ela semifunciona. Quando alucina, não sabe. Quando mente, não mente. Apenas gera. Seu erro é isento de culpa, e, justamente por isso, é perigoso.
Os mecanismos técnicos que buscamos, alignments, guardrails, reasoning frameworks, são tentativas de contornar esse abismo. São o próximo passo para empresas e pessoas. O passo limítrofe. Mas servem menos para garantir que a IA acerte e muito mais para que o humano continue implicado.
É aqui que a ideia de autonomia se torna central. Não se trata apenas de máquinas autônomas, mas de sujeitos autônomos o suficiente para usar as máquinas com discernimento. A liberdade não está no algoritmo. Está em quem decide o que perguntar, o que aceitar, o que recusar. Alteridade, ética, repertório, são as ferramentas que sustentam essa autonomia. Sem elas, a IA será só uma extensão da sua alienação.