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Por que grandes empresas continuam premiando os comportamentos que as destroem

Nenhum CEO entra numa sala de reunião dizendo: “Precisamos ser mais míopes, mais políticos e mais tóxicos.” Nenhum empreendedor escala uma empresa pensando: “Quero gente acomodada, decisões superficiais e resultados de curto prazo.” Ainda assim, é exatamente isso que muitas organizações produzem em série. Não por falta de discursos bonitos, mas por causa de incentivos errados. 

No século XIX, o governo britânico na Índia enfrentava um problema sério: cobras venenosas infestavam as ruas de Déli. A solução parecia óbvia – pagar uma recompensa por cada cobra morta entregue às autoridades. Nos primeiros meses, o sucesso foi impressionante. Milhares de cobras apareceram nos postos de coleta, e os administradores coloniais celebravam a eficácia de sua estratégia. Mas havia um detalhe que ninguém antecipou: empreendedores locais começaram a criar cobras em cativeiro especificamente para matá-las e coletar a recompensa. O negócio prosperou até o governo descobrir o esquema e cancelar o programa. O resultado? Os criadores soltaram todas as cobras domesticadas nas ruas. Déli terminou com mais cobras do que tinha no início. 

Esse episódio ficou conhecido como o “Efeito Cobra”: quando um incentivo mal desenhado fabrica o comportamento errado e ainda amplia o problema que deveria resolver. E antes que você pense que isso é coisa do passado colonial, olhe ao seu redor. Empresas modernas – sem intenção – criam cobras corporativas todos os dias.

Todo sistema de incentivos é também um sistema de comportamento. E o desafio é que poucas empresas administram isso de forma realmente consciente. Muitos elegem o NPS como a métrica sagrada do cliente e depois se surpreendem ao descobrir times direcionando pesquisas apenas para clientes satisfeitos, inflando o indicador sem resolver o problema real. Outros amarram remuneração ao trimestre e lamentam quando decisões míopes corroem valor de longo prazo. O problema não é falta de inteligência. É que, no ritmo em que operamos, raramente paramos para analisar como nossos incentivos moldam comportamentos de maneiras que não antecipamos. 

A ciência comportamental tem documentado esse fenômeno exaustivamente. Edward Deci e Richard Ryan, com a Teoria da Autodeterminação, mostram que incentivos financeiros são fundamentais, mas quando se tornam o único motor de engajamento, começam a corroer autonomia, propósito e colaboração. Dan Ariely, no MIT, reforça esse paradoxo: bônus elevados funcionam bem em tarefas mecânicas, mas reduzem performance em trabalhos que exigem criatividade, julgamento e pensamento crítico, exatamente onde executivos operam. O erro surge quando tratamos incentivos como vending machines: colocamos a meta, apertamos ‘confirmar’ e esperamos que o comportamento desejado caia na bandeja. Mas incentivos não são máquinas automáticas. São organismos vivos que mutam, desviam e se corrompem sem gestão ativa. Enquanto você olha para outro lado, seu sistema de bônus pode estar fabricando comportamentos que você nunca imaginou incentivar. Como sintetizou Charlie Munger, ‘Mostre-me os incentivos e eu lhe mostrarei o resultado’, e muitos desses resultados nascem dos incentivos que deixamos soltos. 

Após duas décadas na Michael Page e mais de 10.000 conversas com executivos, posso afirmar: a questão não é se devemos pagar bem, isso é base, não diferencial. O problema começa quando acreditamos que metas e bônus substituem propósito, reconhecimento e desenvolvimento. Incentivo sem liderança vira ruído. Incentivo sem acompanhamento vira desvio.

Para transformar essa realidade, existem três verdades fundamentais que todo líder precisa entender: 

Primeira verdade: A cultura é formada pelos piores comportamentos que você tolera. 

Cultura não é o que está no slide. É o que sobrevive à reunião. Toda vez que um desvio passa sem consequência, a organização aprende que não era desvio – era permissão. Quando mantém o executivo tóxico porque “entrega números”, você não abriu uma exceção, você estabeleceu uma regra: toxicidade compensa aqui. Quando ignora manipulação de métricas para evitar conflito, você não foi diplomático, você foi um professor: ensinou que mentir é aceitável se o resultado aparecer. Amy Edmondson, de Harvard, mostrou que ambientes em que os membros da equipe não acreditam que podem admitir erros sem sofrer punição tendem a ter menor abertura para relatar problemas e, portanto, menor aprendizagem organizacional. Onde negligência não tem consequência, ela vira método. O silêncio é o incentivo mais perigoso. Cada tolerância vira treinamento. 

Segunda verdade: Se sua métrica não mede valor, ela financia teatro. 

O que é mal mensurado vira performance encenada. O que é bem mensurado vira prioridade real. Horas logadas, e-mails enviados, reuniões atendidas – isso não é trabalho, é dramaturgia corporativa. Se seu bônus só vê trimestre, você comprou miopia e pagou em dinheiro. Empresas visionárias redesenharam seus incentivos para incluir o que importa: inovação que demora para aparecer, satisfação do cliente que persiste, talentos que crescem devagar. Elas recompensam quem constrói o futuro enquanto entrega o presente. Tudo que parece performance mas destrói confiança é efeito cobra. Métricas reais medem impacto, não atividade. O colaborador que faz outros crescerem multiplica valor de formas que planilhas não capturam – mas se você não mede isso, está dizendo que não vale nada. 

Terceira verdade: Para onde vai a atenção do líder, vai a energia da empresa. 

A carreira na sua empresa não é definida pelos valores que você prega, mas pelas vitórias que você celebra. Quando o líder aplaude o atalho, enterra a colaboração. Quando promove o fazedor de número a qualquer custo, cala quem constrói o futuro no silêncio. O poder educa mais que qualquer diretriz. Toda promoção é um outdoor sobre o que realmente vence na empresa. Mas não é só sobre punição e promoção, é sobre o que ganha tempo na sua agenda, espaço na sua fala, destaque na sua reunião. Se você passa uma hora discutindo custos e cinco minutos falando de inovação, acabou de ensinar onde está a prioridade. Se celebra publicamente a venda agressiva mas agradece a colaboração por e-mail, definiu o que tem mais valor. O que sua empresa realmente valoriza está escrito nas carreiras que ela constrói, nas histórias que ela conta, nos exemplos que ela repete. Quantos conselhos aprovam pacotes de remuneração sem questionar os comportamentos que estão comprando? 

O verdadeiro poder de um líder não está nas suas ideias, mas no que ele recompensa e no que ele ignora. Todo bônus, promoção ou silêncio é um recado sobre o que realmente importa. Toda organização é o reflexo perfeito dos incentivos que cria. Você pode imprimir valores nas paredes, contratar consultores, fazer retiros, mas o que molda comportamento são as consequências reais das ações cotidianas.  

O futuro pertence às organizações que entenderem: remuneração justa é essencial, mas sozinha não constrói culturas vencedoras. Precisamos alinhar todos os incentivos – financeiros, sociais e psicológicos – com valores reais. Se você não desenha incentivos conscientemente, o acaso desenha por você. 

Como o Efeito Cobra nos ensina, não importa sua estratégia: se os seus incentivos apontam para outra direção, é para lá que sua empresa vai. A escolha é sua: continuar criando cobras corporativas ou redesenhar os incentivos que realmente movem pessoas e resultados. 

Ricardo Basaglia

CEO Michael Page Brasil

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