Por mais de uma década, ativos digitais são discutidos como agentes de transformação dos serviços financeiros. Contudo, como destacou Bruno Domingues, Head da indústria financeira global da Intel, a verdadeira revolução não está apenas na tecnologia, mas no modo como ela é aplicada para resolver problemas concretos, e isso inclui o papel da regulamentação e do desenho de modelos de negócios viáveis.
Bruno iniciou sua apresentação com uma provocação: se há dez anos o blockchain era o protagonista dos eventos de inovação financeira, o que de fato se concretizou desde então? A resposta, segundo ele, exige uma análise honesta das implementações que deram certo, das que fracassaram e das que ainda enfrentam obstáculos estruturais e jurídicos.
A essência da inovação, explica Bruno, está na aplicação prática. No mercado financeiro, qualquer solução bem-sucedida precisa lidar com dois fundamentos: alocação de risco e capital. Isso passa, invariavelmente, por contratos, sejam eles de seguros, empréstimos ou investimentos. É nesse contexto que os smart contracts ganharam protagonismo: programas que executam automaticamente cláusulas contratuais quando determinadas condições são atendidas. Mas, como lembrou, mesmo contratos inteligentes não escapam da influência do Estado e de suas legislações.
Bruno compartilhou o caso do Japan Stock Exchange, com quem trabalhou em 2016/17 na análise da viabilidade de migrar operações para blockchain. Apesar das vantagens, como disponibilidade, imutabilidade e resiliência, a migração total enfrentou barreiras como privacidade, escalabilidade, interoperabilidade com sistemas legados e até mudanças no modelo de negócios de produtos financeiros derivativos.
Outro ponto destacado foi o paradoxo do risco. Enquanto o blockchain busca eliminar o risco por meio da automação, o setor financeiro é, por natureza, um sistema de gestão e precificação de riscos. Bruno ilustrou isso com um exemplo pessoal: um acidente de trânsito em que, apesar de estar com a razão, optou por não recorrer à Justiça devido ao custo e tempo envolvidos, algo que uma seguradora consegue fazer com facilidade. O que está em jogo, portanto, não é eliminar o risco, mas distribuí-lo e precificá-lo corretamente.
A conversa se aprofundou no papel da tokenização de ativos, que hoje é usada internamente por diversos bancos para representar depósitos, imóveis ou passivos em versões digitais. Bruno apontou que, internamente, essa estrutura permite mais eficiência operacional. Já no varejo, o avanço das moedas digitais de bancos centrais, como o Drex no Brasil, traz novas possibilidades e desafios.
O CBDC (Central Bank Digital Currency), em sua vertente wholesale, é promissor para liquidação interbancária, com vantagens claras de resiliência e alta disponibilidade. No entanto, quando se trata do uso retail, como pagamentos em padarias ou mercados, surgem questionamentos importantes sobre privacidade, rastreabilidade e aceitação em contextos de crise. Bruno lembrou que, em situações como furacões, terremotos ou apagões, o dinheiro em espécie ainda é insubstituível, tanto pelo seu caráter offline quanto pela confiança que representa.
Essa confiança, aliás, é um dos pilares da sua reflexão. “Tecnologia sem confiança é irrelevante”, afirmou. Em tempos em que a quantidade de moeda física emitida continua crescendo mesmo em países onde poucos ainda usam cédulas, é necessário entender o papel do dinheiro como reserva de valor, inclusive contra censura e instabilidade política.
Bruno encerrou com uma mensagem direta: ativos digitais só fazem sentido quando são implementados para resolver problemas reais. A tecnologia, por si só, não é o centro da inovação, o usuário final é. E qualquer estratégia digital precisa considerar fatores humanos, jurídicos e culturais. “Mesmo que todos os requisitos tecnológicos estejam atendidos, se a confiança do usuário não estiver presente, o fracasso é iminente.”